Um peixe pouco fresco

Escrito por António Ferreira

“A decadência da comunicação social tem também estas consequências. Há cada vez menos jornalismo sério e independente, mas ainda há. Mesmo assim, qualquer aldrabão do “Youtube” ou do “TikTok” chega a mais pessoas que qualquer jornalista do “Expresso” ou do “Público”. “

António Costa vai embora. Deixa atrás uma economia em crescimento, taxas de desemprego e inflação controladas, dinheiro nos cofres. Ninguém o vê como arguido no processo que justificou a sua demissão e os “casos e casinhos” dos últimos dois anos justificariam uma profunda remodelação do governo mas nunca eleições antecipadas. É verdade que havia um clamor generalizado a exigir eleições, mas era da oposição e do seu interesse em ter à sua disposição os milhões do PRR.
A pressa do presidente em indigitar Luís Montenegro para o cargo de primeiro-ministro, mesmo havendo ainda a possibilidade do PSD ser o segundo partido mais votado e ficar atrás do PS, apenas mostra que no fundo continua a ser militante do PSD.
Verificamos agora, contados quase todos os votos, que mais de um milhão de portugueses compraram o peixe que André Ventura tinha para vender. Augusto Santos Silva, que se arrisca, cortesia do Chega, a não ser eleito deputado, distingue três categorias de eleitores do Chega (“Público”, 17 de março de 2024): «Os que querem mostrar que estão frustrados e zangados, porque esperavam mais, para o seu bem-estar, da democracia; os que acreditaram na demagogia do tudo para todos com que o Chega procurou atrair funcionários, polícias, agricultores, pequenos empresários e idosos; os que comungam da ideologia da extrema-direita, sendo convicta ou superficialmente nacionalistas, xenófobos, machistas, intolerantes, adversários da ação climática e avessos a normas de civilidade e respeito democrático».
Concordo. Temos portanto os que acham que dar grandes cabeçadas na parede é o melhor remédio para a dor de cabeça, os compradores compulsivos de banha-da-cobra e os vendedores de banha-da-cobra. Não vale a pena acharmos que são muitos, ou demasiados: sempre andaram por cá e sempre houve defensores da pena de morte ou da castração de pedófilos, ou de que todos os políticos são corruptos, ou de que os incendiários deviam ser atados a um pinheiro a arder, ou de que “eles querem todos é poleiro” e sempre houve os pobres diabos que acreditam em tudo o que lhes dizem ou prometem, desde que seja feito aos gritos. A única novidade é votarem agora todos, ou quase todos, no mesmo partido.
A decadência da comunicação social tem também estas consequências. Há cada vez menos jornalismo sério e independente, mas ainda há. Mesmo assim, qualquer aldrabão do “Youtube” ou do “TikTok” chega a mais pessoas que qualquer jornalista do “Expresso” ou do “Público”. O jornalismo dito de referência chega a poucas centenas de milhares de leitores. A televisão está engajada, como boa parte dos jornais, mas ainda é preferível à propaganda desonesta que é distribuída nas redes sociais. As notícias dos órgãos de comunicação social são escolhidas de acordo com as fidelidades de quem as edita e com objetivos que vão muito além do dever e direito de informar, mas continuam a ser a fonte mais fiável de informação.
Uma das grandes discussões do momento nos Estados Unidos tem a ver com liberdade de expressão: pode-se punir ou não quem deliberadamente divulga notícias falsas? Há muitos que acham que não, que todos têm direito à sua própria “verdade” e que a divulgação de mentiras é uma simples manifestação da liberdade de expressão de quem mente. Quem defende esta tese? A extrema-direita, ali representada pela ala mais reaccionária do Partido Republicano.
A pergunta que deveríamos agora fazer é “Qual é o objetivo?” ou “Porque precisam de mentir para ganhar eleições?”, mas melhor ainda é fazer a mãe de todas as perguntas: “O que vão mesmo fazer quando as ganharem?” Um dia saberemos mas será tarde demais, infelizmente.

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António Ferreira

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