Malraux, apesar do nome de escritor, nunca soube ler. O que Malraux fez na terra agreste que comprou em Nave de Haver foi uma pequena vinha e um curral onde criou touros para lidar na praça da terra. A aldeia fica perto da Guarda e os seus monumentos maiores são a praça e a Igreja, esta muito mais pequena que a primeira. Malraux fez touros bravos, deu-lhes de comer, pagou veterinários, cuidou-os todos os dias. Os bois são de rotinas duras – afirmava. Os animais querem comida a horas, pasto todos os dias. Lá lhes abria os currais, lá os chamava a horas, lá os vendia para as corridas da aldeia e uma ou outra tourada. Malraux pagou os impostos, pagou o veterinário, pagou as licenças, as vistorias, os IVA e os IRC. Sou empresário sem letras – disse para quem o quis ouvir. Com nome sonante fez um ferro sui generis, com o M bem trabalhado. O ferro Malraux só se conheceria no distrito, mas já era suficiente para fazer face aos negócios da vida. Educou os filhos. Só teve dois porque ficou viúvo cedo. Um touro levou-lhe a mulher quando esta se distraiu. Esse touro vendeu-o para os caçadores numa história ilegal que lhe deu gozo e vingança. Solto nos baldios, perto do Sabugal, deixou que o matassem como se da Gorongosa se tratasse. O Malraux perdera a mulher e vingara-se do touro. Os outros viviam felizes nos prados de Nave de Haver. Todos os dias na rua, criados com mimo e dedicação. Malraux nunca ouviu essas discussões sobre animais e seus direitos. Isso é blasfémia – disse a um tipo que o interpelou depois de uma venda para a tourada. Malraux chegou aos setenta cumprindo seus deveres e sua profissão. Sem dívidas, sem roubar ninguém, sem desejar mal nenhum. Em 2018, não conseguindo fazer face às despesas e incapaz de vender os animais, meteu-se com eles a caminho de Lisboa e ontem largou-os na Avenida da Liberdade. Malraux, o terrorista, o bandido, o toureiro, morreu enforcado no Marquês enquanto todos olhavam os touros que desciam para os Restauradores.