Um embarque assinando consentimentos

Escrito por Diogo Cabrita

“No fim pode sempre haver falhas e a competência das pessoas é importante. Há um piloto que conseguirá amarar. Há o piloto que planará e fará aterragens em situações extremas. Tudo isto se tenta melhorar impondo mais normas e mais computadores e inteligência artificial. “

Voar é um conhecimento e um treino que alguns pagaram para ter, outros foram premiados com essa sabedoria em funções públicas. Se fores de avião não assinas um consentimento e não perguntas as consequências ou os azares envolvidos. Queres viajar? Então pagas o bilhete e entras na estrutura que levantará voo. É segura? Acreditamos que sim. Leva uns pilotos que podem cometer erros, ou que podem enlouquecer? Há inúmeras listas de procedimentos para evitar falhas. Dupla validação, controle listado de automatismos, verificações constantes, repetição de regras. No fim pode sempre haver falhas e a competência das pessoas é importante. Há um piloto que conseguirá amarar. Há o piloto que planará e fará aterragens em situações extremas. Tudo isto se tenta melhorar impondo mais normas e mais computadores e inteligência artificial. O facto histórico é que voamos e mergulhamos nessa aventura sem assinar coisa nenhuma e sem garantias. Já no Direito é tudo semelhante, embarcas numa peleja “tribunalesca” sem garantias de coisa alguma, sem consentimentos informados e deixas-te conduzir na batalha jurídica por advogados e juízes sem qualquer rumo previsível. Na restauração ninguém se lembrou de colocar consentimentos ou contratos a quem vai comer e beber.
Então porque surgiu todo o empenho em haver consentimentos nos atos de saúde? Como se pode explicar um voo a um turista? Os manómetros, os aparelhos envolvidos, a tecnologia em ação? E uma cirurgia? E um tratamento? Há rotinas, protocolos, estatísticas que permitem ter ilusões sobre resultados, há certezas que nascem de surpreendentes efeitos secundários, e tudo isso é a saúde e a sua linguagem. O negócio da saúde construiu um sem número de registos e de indicações e linhas orientadoras que não são garantias científicas, mas sim práticas defensivas para evitar indemnizações que surgem do contrato com consentimentos. Ninguém pode garantir que o menino em terapia não se suicida. Pode pregar-lhe com mais drogas, mais anestesias da vontade, mas a garantia de que não sobrevém um desastre não existe. O erro zero também é impossível apesar de ser desejado na aviação, na saúde e na restauração.
O que é uma evidência em saúde? É uma contabilidade numérica em que milhares de utilizações de uma prática, ou fármaco, corresponderam a uma série de resultados desejados ou pretendidos. Na realidade, se a amostra fosse outra podiam haver resultados diferentes. Reduz-se isto em mais exposição, maior número de sujeitos testados, ou até na sua padronização mais específica. Então podemos construir um resultado? Infelizmente sim. Os consentimentos referem-se a regras e a protocolos e a uma sempre incompleta informação. Quando julgamos dominar um tema pensem o longe que estamos de um salto de paraquedas, ou de um voo num planador, ou da ignorância em que vamos voar. Estas obsessões que hoje dominam a saúde trouxeram qualidade por um lado, muita ilusão por outra, muita estupidez em “tresleituras” de telemóvel, muita utilização para efeitos sem ganhos em saúde, e tudo isto balizado em textos de milhares de letras cheios de autorizações e consentimentos. Como entraríamos num avião com este método?

Sobre o autor

Diogo Cabrita

Leave a Reply