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“Só faltava realmente um galardão por atribuir. Este. Numa cidade com tantas valências – a montanha, a qualidade do ar, a saúde, o silêncio, a sopa de grão, a morcela – os responsáveis camarários acharam por bem que este é o local predilecto dos santos populares. “

1. Em conferência de imprensa, a Câmara da Guarda anunciou que a cidade vai ser declarada capital regional dos santos populares. Vejamos. Não há município que não queira ser capital de qualquer coisa. É da castanha, do calçado, da cereja, da chanfana, do queijo, dos ourives, da alheira, da cerâmica, da arte rupestre, do surf, etc. Só faltava realmente um galardão por atribuir. Este. Numa cidade com tantas valências – a montanha, a qualidade do ar, a saúde, o silêncio, a sopa de grão, a morcela – os responsáveis camarários acharam por bem que este é o local predilecto dos santos populares. Ainda se fosse do Santo Agostinho, ou do Santo Anselmo, ou do São Alberto Magno, ou do São Tomás de Aquino, a coisa até passava! Mas tinha que ser dos santos populares! Mais valia vir Sérgio Costa assumir a sua verdadeira natureza e clamar pela “Guarda, Capital do Pimba”.
2. Ando fascinado com a onda de entusiasmo despertado com a “sucessão” de Mariana Mortágua à frente do BE. Já muita coisa se disse sobre o tema e sobre MM, que será certamente redundante repetir. Maxime, estar bem preparada, académica e politicamente. Mas a minha adesão a este clamor acaba aí. Diz-se que MM é “mais radical” do que Catarina. Não é verdade. O radicalismo de ambas é que assenta em ramos diferentes. Na representação, no caso de CM, ou no fervor ideológico, em MM. A diferença não é de grau, mas de natureza. O outro argumento encontrei-o no último comentário semanal de JM Júdice, na SIC N. Diz ele que, à semelhança do Chega, o BE é um partido adolescente. E que, do outro lado do espectro, com excepção da IL, só há partidos velhos. Faltando desesperadamente partidos adultos. A tese parece-me apropriada. O incrementalismo – de que sou fã, e muitos chamam reformismo – é um modelo imprescindível de fazer política. Combinar o movimento e a inércia, o vigor e a lassidão, a mudança e a permanência, é uma tarefa de adultos para adultos. Ora, MM personifica exactamente a natureza do BE. Ou seja, um partido adolescente. Sabendo nós que, hoje em dia, em muitos casos, a adolescência dura até aos 35. MM reúne todas as características: a irredutibilidade ideológica, o querer “vida boa” para todos, sem discutir o preço, o desejo mágico, os resquícios do “eu” glorificado no Maio de 68, um discreto heroísmo romanesco. MM está bem para o BE. Nada mais a registar.
3. O Dr Costa, uma vez mais, vem a público advertir para os perigos do populismo. No seu linguarejar truculento e deselegante, vem associar o tal populismo à normal accountability sobre o funcionamento do sistema político. Com o seu habitual cinismo, o Dr Costa, também conhecido pelo “nosso” Churchill, vem descartar responsabilidades no lamaçal político que criou e agitar um fantasma para entreter o público. Um fantasma que o seu próprio partido alimentou, para assim debilitar o PSD. O populismo não é uma ideologia, mas uma forma de fazer política. O seu modelo de negócio é a ineficiência e a descredibilização do sistema político. Algo que o Dr Costa não tem deixado por mãos alheias. Ou seja, faz crescer o Chega graças ao desastre da sua governação. E tira partido disso, por razões tácticas. Um mestre, há quem assegure. Mas será que o Dr Costa não percebeu ainda que nós sabemos que ele sabe que nós sabemos? Fazer o papel de Pedro na história do lobo é como brincar com o fogo.
4. Não vou ao ponto de afirmar que, na escrita, o estilo é tudo. Longe disso. Porque o estilo vai muito além da escrita. Está antes, durante e depois. Não é a combinação repetida de certas palavras de belo efeito, de modo a que nada signifiquem, como ironizou Herberto Helder, no conto homónimo de “Os Passos em Volta”. Olho para e estilo enquanto alquimia. Que reúne a disciplina e a necessidade. Que confere singularidade e leveza àquilo que toca. Que não deixa nada ao acaso. Sim, é tudo isso. Mas a sua concretização é pessoal, única. Alia o apuramento vigilante da forma, com o vigor cristalino das ideias que transporta. Emagrecendo o verbo, retira o que está a mais, deixando que a luz passe e possa ser admirada pelo leitor. Colocando espessura, filtra essa luz, criando uma penumbra onde o leitor se perde e, quiçá, se encontra.

* No calendário vegetal celta, significa pilriteiro
** O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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