Este nosso hábito de, à falta das palavras mais adequadas, trocarmos o nome a qualquer coisa ainda há de dar cabo de nós. Aparentemente, dependendo da fase da vida, gostamos de transferir palavras do rol das maleitas para o das disfuncionalidades sociais, do da organização social para o das emoções, do da guerra para a saúde e por aí fora. Os adolescentes parece viverem para “cenas tipo” e, desde que os petizes ascenderam a “príncipes”, os novos pais passaram a sentir-se todos uns reizinhos. Numa outra realidade, que sabemos querer-se distante, apesar de tão evocada, convencem-se os doentes de que são “guerreiros”. Uma suposta guerra em que os “heróis”, se não forem sempre médicos, hão de ser enfermeiros, claro. Cenário tão mais intimidante quanto maior for o risco de, na nossa divergência, sermos tomados por ingratos e insultados em consonância. De tudo isto poderia nem vir grande mal ao mundo, mas lá que uma linguagem, em que a forma e o conteúdo deixam de se traduzir entre si, corre o risco de se tornar disfuncional, corre. A palavra preto deixou de nomear uma cor, ou a ausência dela, para passar a denominar uma classe social. Política passou a significar ladroagem e fleuma deu em sobrevalorizar qualquer ignorante até aí tido por isso mesmo. A justiça evadiu-se dos tribunais para deambular pelas cidades de quem se considera dono de toda a verdade. Ela própria obrigada a disfarçar as maiores parvalheiras para que as tomemos como válidas. Terá sido assim que nasceram os “médicos pela verdade”, os “pajens pela verdade”, os “catequistas pela verdade”? Se não foi, poderia muito bem ter sido porque ouvir tanta barbaridade da boca de quem devia combatê-la faz com que nos deixemos de chocar para passarmos a sentir arrepios a cada sílaba.
Num outro tempo, os consumos de sol, café com os amigos e almoços com a família lá iam ajudando a relativizar a existência de tanto zagorro. Agora, quando qualquer dessas veleidades nos pode sair mais cara do que o suplício de ter que conviver com eles por cabo, restar-nos-ia contrariá-los a partir do sofá. Aliás, não fosse o caso de o privilegiarmos como o sítio de sestas, seria o que acontecia ao descobrirmos mais estas fragilidades todas que a pandemia ajudou a destapar. Assim, na impossibilidade de ação preventiva ou remediadora, o mais aconselhável será fugir de todos os que se dizem pela verdade, querer zero não sei quê e stop não sei das quantas. Até porque, para além da tacanhez de discurso, costumam ter muito mau gosto musical e consumir muitos livros de autoajuda que os fazem sentir-se habilitados para auxiliar os outros. Por isso, se a coisa envolver as palavras ajuda e solidariedade, o melhor é fugir também. No caso de algumas delas anteceder a palavra social, talvez fugir não baste, será preciso correr o mais que se puder e nunca esquecer que há até quem acredite em bruxas. Em bruxas, em anjos, em qualquer coisa precedida de palavras que, de imediato, lhes permitam colar-nos um rótulo contrário, “quem não for pela verdade, prefere a mentira”, e, pronto, passamos a ser mentirosos.