Não é novidade para ninguém que Pedro Cabrita Reis mudou de nome. Mudou o seu nome para… o próprio nome. Esta atitude é talvez uma das suas mais ousadas obras de arte. Está em perfeita consonância com esse ser humano maravilhoso, misterioso e labiríntico, surpreendente e profundo, habitante solitário de um planeta fascinante que por sinal tem o nome de Cabrita.
Lembro-me que a série “Self-portrayed in the studio”, exposta no Museu da Guarda, levantou celeuma, já que sob uma análise mais desavisada, apresentaria uma linguagem visual dissonante do conjunto expositivo que incluía Croft, Chafes e Zulmiro. Na verdade, a obra de Pedro Cabrita Reis – ou melhor, de Cabrita – propõe-nos uma visão urbana das materialidades a partir dos elementos de que o artista se tem valido para construir o seu universo criativo. É a partir do espaço ilimitado do seu estúdio que o artista desenvolve um processo criativo deveras singular, como um natural prolongamento da sua personalidade, dando aos objetos que perfazem o seu quotidiano linguagens destintas, prefigurações que desconstroem o imediatismo da forma, da função e do código visual que se lhe atribui por via de regra. Parece inegável que apraz a Cabrita Reis – ou por outra, a Cabrita – remover os códigos e esvaziar signos que inerem aos objetos que são imediatamente reconhecidos pelo interlocutor comum enquanto produto de si mesmos, dos seus domínios vivenciais e viduais, para propor uma nova visão, transviada desse reconhecimento geral ou, se quisermos, social. O seu autorretrato é afinal um processo que conduz à sua própria descaracterização. A sua elevação criativa, conduz-nos àqueles conceitos que são tão caros a Pierre Bourdieu, designadamente «capital simbólico», «competência artística», «campo» e «habitus». Bourdieu e Darbel explicam o que parece ser um postulado que desafortunadamente deixamos de ter presente com confrangedora frequência: o sucesso da apreensão de uma obra de arte depende das competências do recetor, ou seja, do grau de conhecimento do código linguístico abordado. Assim, todo o indivíduo/observador possui uma determinada capacidade de entendimento/identificação das informações plásticas prestadas pelas obras ou conteúdos propostos pela mesma, capacidade que depende diretamente do domínio que tiver do léxico em presença e que resulta, obviamente, de um denso e complexo contexto, cognitivo, educacional, social. Nunca como hoje a arte se tornou tão exigente, não sob o ponto de vista tecnicista, obviamente, mas sim analista. Quer dizer, ela não necessita de comunicar, necessita, sim, de ser refletida, estudada.
Na verdade, a obra de Cabrita é bastante clássica. Quando diz: «olho aquele pinheiro, que é a minha companhia inspiradora […] e através daquele pinheiro dou a ver muitas das minhas árvores (que podem até ser árvores de lado nenhum)», está a fazer um dos mais elementares exercícios de definição de arte hodierna. E continua: «E aquela ali tem sido a mãe de muitas das minhas árvores, no sentido em que observo como ela se mexe lentamente, como os pássaros ao final do dia chegam e se aninham por lá, como à noite ela fica toda iluminada pela cidade e deixa de ser pinheiro verde para se transformar num pinheiro cor-de-laranja com luzes vermelhas a cintilar» . Refere ainda o nosso artista, olhando da janela do seu estúdio: «Aquela árvore está ali para tomar conta de mim, e de todas as árvores que eu vier a pintar ou desenhar». Há toda uma paisagem que se perde dentro dos domínios da arte sempre que desaparecem as suas figurações mais identitárias.
Todavia, a “reconstrução” não poderá ser nunca “substituição” do real funcional; implica a harmonização das formas naturais e as das naturezas criadas. O bosque que Cabrita Reis nos propõe, existe no seu estúdio absoluto, totalizante – ilimitado, como dizíamos… Porque não devemos apenas “tomar conta” dos bosques e das árvores, devemos deixar que sejam as árvores e os bosques a tomar conta de nós…
Um abraço, meu querido Pedro. Aliás, Cabrita!
* Escritor