Há algo nestas coisas, de reis e coroas e coroações de reis, que involuntariamente nos transporta para um passado distante. Depois de tanta coreografia real, mal damos por nós e já nos encontramos sentados, numa esplanada moderna, a observar a arraia-miúda das ruas da Idade Média que imaginamos tão movimentadas como a atual baixa das nossas cidades, mas muito mais pestilentas. No tempo que leva pedir, tomar e pagar um café e sem qualquer outro esforço, identificamos: na fala persuasiva, o vigarista que nos aborda como que a querer perguntar as horas; na conversa sem nexo, o tonto; nos gestos subterfúgios, o ladrão; nos meneios desengonçados, as meretrizes; nas várias camadas de roupa suja, o pedinte. Tudo a acontecer naquela “novilíngua”, quase que se diria importada do Algarve dos anos 80 (lá está, do século passado), cujos falantes parecem dominar com mestria, ainda que ninguém perceba peva. Daí a desatarmos na mais profunda reflexão sobre a humanidade de que somos capazes já se vê que vai menos que um nada.
Entre o que em nós terá evoluído e o que em nós terá regredido, procuramos o padrão para a persistência dos tipos de personagens urbanos ao longo dos séculos, mas não passamos disso. De procurar. Com coisas melhores que fazer, do que dedicarmo-nos ao estudo aprofundado dos comportamentos humanos no meio de uma rua cheia de gente para cá e para lá, depressa esquecemos os tolos, os vigaristas e as outras personagens todos que ora são do Gil Vicente, ora são de Shakespeare e, às vezes, de Beckett. Ao fim e ao cabo, se padrão houver, qualquer dos três já o descobriu e não se acrescentará grande coisa ao que já foi feito. Por isso, melhor faremos se decidirmos esquecer os bons dos padrões novos, os que ainda ninguém identificou, e recorrer aos velhos para tentar decifrar este enorme contraste entre a unissonante retórica mediática a “atestar”, histrionicamente, o depauperamento da atual governação nacional e as enlevadas reportagens e peças jornalísticas em torno da entronização do monarca britânico, ignorando, praticamente, os protestos republicanos. É que, enquanto o bom deste “atestado” de depauperamento se escora, retórica e ficcionalmente, quase só na categoria de “os portugueses” (que não compreendem, não aceitam e por aí fora), não havendo registo de manifestações populares a exigir a cabeça de António Costa e do seu Governo, os cartazes “not my king” e afins dos antimonárquicos britânicos estiveram, mesmo, nas ruas de Londres e não eram tão poucos como isso… O que, entre resistência e repressão, expressa uma posição política muito mais real e documentável do que aquela com que, permanentemente, ocupam a quase totalidade do espaço mediático. Como perguntaria o outro: ter-se-á alguém infiltrado entre os jornalistas que, às vezes são comentadores, às vezes são apresentadores, e assumido o controlo da sua voz? É que, mesmo dando de barato que o façam inconscientemente, por timidez, ou até por necessidade, o que cada vez mais vai parecendo é muitos dos jornalistas de hoje, para não dizer a maioria, parecerem não passar de ser a “voz do dono”. Seja lá esse quem for.
Sentados de costas, à espera de não ser
“Daí a desatarmos na mais profunda reflexão sobre a humanidade de que somos capazes já se vê que vai menos que um nada.”