Sacadura Cabral no século da travessia do Atlântico Sul

“Sei que a 30 de março de 1922 voou, navegando por si, por cima das espumas brancas a desfazer-se no mar, até ao Brasil. Assim como as da neve que viu primeiro tão brancas nas ondas da Serra, lá para as bandas de Celorico da Beira.”

Nasceu na Beira Serra, em Celorico da Beira, a 23 de maio de 1881. Tinha dez irmãos. O pai morrera cedo e ele era Beirão.
Com 20 anos ousa fazer o levantamento do Rio Espírito Santo, em Moçambique. O rigor na medida era a de um Beirão. No Observatório de Lisboa causou admiração.
Em 1915 voava. A Armada encarrega-o de organizar a Aviação Naval. Em 1919 ousa dar um novo destino aos métodos de navegação. Uns americanos vieram de uma praia do Estado de Nova Iorque até à Torre de Belém mas foram apoiados por 21 navios da Marinha de Guerra norte-americana, colocados de 60 em 60 milhas emitindo sinais de luz e de rádio para orientação dos aparelhos. Ou seja, sem navegação autónoma.
Em 1922, com o seu ousar dar destino e o rigor na medida, leva a reboque Gago Coutinho com um novo sistema de navegação. Sacadura Cabral era Beirão. Ambos atravessaram pelo ar, com navegação autónoma, de Lisboa ao Brasil.
Saíram da vizinhança da Torre de Belém a 30 de março de 1922.
Deixa-se aclamar. Gago Coutinho gosta muito. Sacadura Cabral era Beirão. E sabe que Portugal pode ser o pioneiro, o primeiro a dar a volta ao mundo a voar. Ele tinha o sistema de navegação adequado. Preciso. Em abril de 1923 começa a via sacra. Teve uma estação em cada ministro com quem falou, em cada um de todos os que sabem porque ouviram dizer. Sacadura Cabral era da Beira Serra e aqui, por aqui, a vida ensina que só sabe quem já fez… Os outros, ouviram dizer. Na Pátria são quem toma, empatando, o tempo. Não é o dinheiro o mais mal distribuído, é o tempo. Convictos que sabem por ter ouvido dizer, alimentam-se de tempo. Os que ousam dar destino acabam sempre, por pouco, a ver Portugal chegar atrasado. De facto, os americanos anteciparam-se na volta à Terra.
Foram e mandaram-no a correr arranjar aviões. A 15 de novembro de 1924 o céu torna-se mar. Dizem os Beirões que o mar não tem cabelos. Mas Sacadura Cabral sempre soube esperar. Nesse dia veio-lhe a Eternidade. Os que sabem de tudo por terem ouvido dizer ficaram palavrosamente elogiadores.
E Sacadura Cabal é da Beira Serra.
Tinha da Beira, a forte, a feia, a fria, uma estatura média. Era como a maior parte da gente da sua terra. Esse Homem sem propriamente nome e sem vaidade, reservado, calmo. Tranquilo, esclarecido, para chegar até ao simples e rigoroso que é solução de problemas. Teve enormes contrariedades, teve grandes sucessos. Foi-os sofrendo ou disfrutando calmo e natural. Era simples, vulgar e quantos puderam louvavam-se daquilo que ele tinha sido autor. Tinha esse prazer de se ocultar. Revelava-se apenas pelas ações. Poucos ou nenhuns o conheciam. E assim, como todos os da Beira Serra, era de poucas palavras. Por isso, ele era sempre o que não era. Tinha Coração dentro do peito. Talvez de Leão com um pouco de mel misturado onde lhe derramavam fel.
Sacadura Cabral esse Homem que Deus haja, já não sei se morreu ou não.
Sei que a 30 de março de 1922 voou, navegando por si, por cima das espumas brancas a desfazer-se no mar, até ao Brasil. Assim como as da neve que viu primeiro tão brancas nas ondas da Serra, lá para as bandas de Celorico da Beira.
Casal de Cinza, 28 de março de 2022

P.S.: Em dezembro de 1924, Fernando Pessoa escreveu um poema:

Sacadura Cabral

No frio mar do alheio Norte,
Morto, quedou,
Servo da Sorte infiel que a sorte
Deu e tirou.

Brilha alto a chama que se apaga.
A noite o encheu.
De estranho mar que estranha plaga,
Nosso, o acolheu?

Floriu, murchou na extrema haste;
Jóia do ousar,
Que teve por eterno engaste
O céu e o mar.

 

Sobre o autor

Fernando Carvalho Rodrigues

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