O atual contexto de pandemia suscitou uma atitude diferente na escolha de rotas e destinos de férias, ou mesmo de pontuais períodos de lazer e passeio fora desse período.
Para muitos, este foi um tempo de (re)descoberta de lugares, paisagens, patrimónios ou realidades que têm ficado à margem das atenções; mas foi também enriquecimento cultural e reencontro com um poeta (e não só) profundamente ligado à mais alta cidade de Portugal.
Vem isto a propósito da interessante e oportuna exposição “150 anos com Augusto Gil” que o Museu da Guarda abriu no passado dia 30 de julho, data em que assinalou também 80 anos de atividade. “«A mostra expositiva [referiu o Museu através de uma nota informativa] pretende constituir-se como um momento de encontro entre o passado e o presente, uma oportunidade para evocar e (re)descobrir uma das mais ilustres figuras da cidade, que imortalizou o seu amor pela Guarda e pela sua região através de poemas que a memória coletiva não esquece».
Esta exposição, patente numa das salas do Paço da Cultura da Guarda, pode ser visitada até ao final do ano letivo 2020/2021, tendo entrada livre. Como já tivemos a oportunidade de sublinhar noutras ocasiões, prevalece ainda um grande desconhecimento sobre Augusto Gil, cuja projeção vai muito para além da popular “Balada da Neve”, desdobrando-se em várias facetas.
A informação biográfica sobre o poeta, nomeadamente aquela que se encontra dispersa por plataformas digitais, carece de correção e atualização, desde logo na data do seu nascimento e nalgumas das passagens da sua vida (dados que importa corrigir).
Augusto César Ferreira Gil nasceu na freguesia de Lordelo, Porto, a 30 de julho de 1870; berço fortuito devido à circunstância de sua mãe se encontrar ali, acidentalmente. Passou a maior parte da sua vida na Guarda e aqui fez os primeiros estudos; frequentou, depois, o Colégio de S. Fiel, após o que regressou à cidade mais alta, onde se encontrava em 1887. Tempo depois, ingressou como voluntário na vida militar que deixou com o início dos estudos na Escola Politécnica; estes seriam interrompidos, contudo, por motivo de doença.
Em finais de 1889 foi autorizado a frequentar a Escola do Exército, onde o aproveitamento letivo não foi exemplar. Passados dois anos, em maio de 1891, ingressou no Regimento de Infantaria 4 e aí prestou serviço até ao mês de novembro. Tendo voltado à Guarda, Augusto Gil fez nesta cidade, em 1892 e 1893, os exames do Liceu, rumando posteriormente para Coimbra, em cuja Universidade cursou Direito. Na cidade do Mondego teve como companheiros Alexandre Braga, Teixeira de Pascoais, Egas Moniz e Fausto Guedes Teixeira, entre outros.
Concluída a formatura, em 1898, Augusto Gil regressou à Guarda; neste período a vida não lhe correu de feição e foi confrontado com diversos problemas, de ordem profissional e de ordem económica. Pretendeu exercer advocacia, mas não conseguiu «clientela que lhe desse ao menos para sustentar o vício do tabaco». O poeta, como escreveu Ladislau Patrício, já tinha vaticinado estas dificuldades «na aldeia sertaneja, onde hei-de ser/o melhor poeta e o pior legista».
Desejou ser professor provisório do Liceu, mas o conselho escolar dessa época não o considerou competente para reger a cadeira de Português. Decidiu ir para Lisboa e foi trabalhar com Alexandre Braga; em 1909 regressou à Guarda, enredado em dificuldades financeiras. Com a implantação da República, impulsionou a criação do Centro Republicano da Guarda e fundou o semanário “A Actualidade”, que dirigiu entre 1910 e 1912.
Recordemos que o distrito da Guarda foi pioneiro da imprensa, tendo aqui surgido também alguns dos mais expressivos jornais religiosos e políticos. Com postura diferenciada, os jornais desta região tiveram um importante papel na promoção das ideias políticas, mormente do ideário republicano, constituindo a sua leitura um (re)encontro com a realidade de tempos e lugares.
O jornal “A Actualidade” definiu-se como «Folha republicana», tendo o seu diretor contado com colaboração do Álvares de Almeida (Nuno de Montemor), Ladislau Patrício, Amândio Paul e Afonso Gouveia, para além de outras personalidades. A envolvência no mundo do jornalismo e da política originou vários dissabores, contrariedades, a Augusto Gil, que ficaram vincadas nas páginas deste periódico guardense.
Em novembro de 1911 (quando João Chagas fez parte, pela primeira vez, de um governo da República), Augusto Gil foi nomeado Comissário da Polícia de Emigração Clandestina, pelo que foi viver para Lisboa. Após ter exercido, durante escassos meses, o cargo de Governador Civil de Aveiro voltou para a capital onde teve, em 1918, uma passagem pelo Ministério da Instrução Pública. Em 1919 foi nomeado Diretor Geral das Belas Artes.
Na capital portuguesa foi uma figura altamente conceituada nos meios intelectuais e sociais; assim não é de estranhar a homenagem de que foi alvo no Teatro Nacional a 19 de junho de 1927. A comissão promotora dessa iniciativa integrou nomes como Júlio Dantas, José Viana da Mota, Henrique Lopes de Mendonça, Columbano Bordalo Pinheiro e Gustavo Matos Sequeira.
Nomeado Secretário-Geral do Ministério da Instrução Pública não chegou a tomar posse do cargo, pois morreu a 26 de fevereiro de 1929, em Lisboa, numa casa situada na Rua Bartolomeu Dias.
O funeral de Augusto Gil (realizado a 1 de março, na Guarda) constituiu, de acordo com os relatos jornalísticos da época, uma grande manifestação de pesar. «Tudo o que a Guarda tem de mais distinto acorreu a tomar parte na sentida homenagem» e participar no cortejo fúnebre que se «revestiu de desusada imponência». Os restos mortais de Augusto Gil repousam num jazigo localizado logo à entrada do cemitério municipal, ostentando dois versos de “Alba Plena”: «E a pendida fronte, ainda mais pendeu…/ E a sonhar com Deus, com Deus adormeceu…».
“Musa Cérula”, “Versos”, “Luar de Janeiro”, “O Canto da Cigarra”, “Gente de Palmo e Meio”, “Sombra de Fumo”, “Alba Plena”, “Craveiro da Janela” e “Avena Rústica” foram as principais produções literárias deste poeta, cujo trabalho evoluiu quase à margem de escolas ou correntes literárias.
Muitos dos versos de Augusto Gil passaram para o cancioneiro popular, como sublinharam alguns estudiosos da sua obra, suportada num verso melodioso e num ritmo suave. Augusto Gil tem associado o seu nome a outras áreas da cultura; desde logo ao fado de Coimbra, cidade onde, aliás, estudou.
A obra de Augusto Gil suscitou outras abordagens, como escreveu Helena Rocha Pereira. «Para quem conhecer apenas em Augusto Gil o poeta de verso dúctil e cadência fácil, cuja musicalidade lhe granjeou o aplauso dos salões nas primeiras décadas deste século, o cantor de temas não raro marcados pelo circunstancial, o autor sob a influência confessada de António Nobre, João de Deus, Guerra Junqueiro — para esses, será certamente motivo de surpresa ouvir falar da presença de modelos helénicos na sua arte (…)».
Se Augusto Gil cultivou a poesia, as letras, o jornalismo, cultivou também o seu amor pela Guarda onde escreveu uma grande parte dos seus melhores poemas. Esta cidade bem o pode revisitar na exposição a que aludimos no início deste texto. É um dever de memória…