Em princípios do século XX, a “Ilustração Portuguesa” e o jornal “O Século” decidiram organizar uma prova hípica, um raid, como então se dizia, que percorreria todo o território nacional, com exceção do Minho e Algarve. Era uma ideia ambiciosa, a primeira do género em Portugal, que exigia largos recursos logísticos e financeiros, e pretendia dar a conhecer melhor Portugal e as localidades por onde passava. À ideia, e pela qual tomaram o maior interesse, associaram-se suas majestades El-Rei D. Carlos e a Rainha Senhora Dona Amélia, bem como o Governo.
Era dirigida superiormente por uma Grande Comissão Central, presidida pelo rei, e constituída por elevado número de personalidades, das mais seletas do país. Em cada localidade onde estivesse localizada a meta haveria comissões locais, também elas repletas da gente de maior relevo da terra. Por vezes até o próprio bispo.
Era uma prova de resistência, com mais de 1.400 quilómetros, dividida em etapas, a decorrer em 35 dias. Saindo de Lisboa, ia até Coimbra, ao Porto, seguia por Vila Real, Viseu, Guarda, Covilhã, Castelo Branco, Évora, Santarém e Lisboa. Foi uma festa contínua, sempre recebidos por multidões, e onde não faltava a banda filarmónica.
O percurso Viseu-Guarda
A etapa de Viseu à Guarda, entrava no distrito pela ponte da Canharda, ia a Fornos, Barreira, seguindo pela Estrada Real nº 44, passava a ponte de Juncais, ia por Salgueirada, ponte da Jejua e Quinta do Chafariz do Além, até Celorico da Beira.
Seguia-se a Ratoeira, Lageosa, Porto da Carne e Cavadoude. Depois de um curto trajeto pela Estrada Real nº 11 e pela Estrada Real nº 55, entrava na Guarda pelas Portas D`El Rei, e seguia até à Praça Velha.
A chegada dos cavaleiros mais adiantados à Guarda ocorreu na quinta-feira, com péssimas condições de tempo, por vezes de extrema violência, pois desde Celorico da Beira que os cavaleiros foram fustigados por chuva torrencial, acompanhada de trovoada.
Ezequiel de Carvalho dizia mesmo, que «o granizo era tanto na serra que até fazia recuar os cavalos». Chegou à Guarda já perto da meia-noite de 2 de outubro, já as barracas da feira de S. Francisco estavam armadas.
O percurso Guarda-Covilhã
Este troço seguia sempre pela Estrada Real nº55, mais ou menos a estrada nacional nº18 de hoje.
A etapa da Guarda à Covilhã, 44 quilómetros, foi feita em 6 horas e meia pelos vencedores.
Comissão da Guarda
Presidida por António Corsino Caldeira, era constituída pela gente mais grada da cidade. Veja-se: Alexandre Patrício, Zeferino Lopes Gomes de Souza, André dos Santos Moura, Luís Ribeiro de Portugal, Francisco Lobo de Vazconcelos, Ernesto Franco, Virgílio de Melo, Isidro de Melo, Leandro Homem de Almeida e José Augusto de Melo, veterinário distrital.
A esta comissão competia auxiliar a organização, nomeadamente na fiscalização da chegada e partida dos cavaleiros, e a sua pesagem. Para assegurar a logística necessária disponibilizou o Hotel Melo e o Hotel Santos, e cavalariças para 150 cavalos.
A família Corsino Caldeira
A família Corsino é antiga de séculos na freguesia dos Trinta. Por ali faziam os seus negócios, amanhavam as terras e tinham um ou dois pisões no rio Mondego. Mas, em meados do século XIX, decide ir mais longe, fazer um melhor aproveitamento das águas do rio e adquirir máquinas que lhe permitissem produzir mais, mais barato e de mais qualidade. É assim que nasce a Fábrica de Marrocos, que será, porventura, a primeira fábrica da região. O sucesso empresarial e bons casamentos levam a família para a ribalta e o luxo. Repartia o seu tempo pela aldeia, por Lisboa e pela praia. Frequentava os melhores hotéis, ia ao casino e à ópera.
Mas, de todos, aquele que irá adquirir maior notoriedade na região é António Corsino Caldeira. Nasceu em 1868, nos Trinta, e já formado em Direito, vem para a Guarda como “recebedor” do concelho. Entre outros cargos, será administrador do concelho, o que lhe trará alguns dissabores.
Rico, casou com uma viúva riquíssima, D. Maria Margarida Barros Castelo Branco, sendo o finíssimo copo de água servido pela famosa casa Ferrari. A lua-de-mel foi passada, já na altura, na Riviera francesa, no meio do luxo e ostentação. Era sócio das mais prestigiadas instituições portuguesas e, na Guarda, pagava cotas de tudo, desde Bombeiros Voluntários, Real Monte-Pio Philantropico Egytaniense, Club Egytaniense, Filarmónica Artística Egitaniense, e côngrua paroquial em todo o vale do Mondego e nas aldeias serranas. Dele “herdei” umas velhas arcas com documentos interessantíssimos, alguns, relativos ao raid.
Faleceu em 1934, em Lisboa, onde tinha ido procurar alívio para os seus males.
* Investigador da história local e regional