Prairial

1. O instituto público TURISMO de Portugal fez um vídeo promocional sobre as nossas virtudes… turísticas. A saber: praias imaculadas, Lisboa em vista aérea, ou a sua perspectiva do Castelo e Senhora do Monte, a zona ribeirinha do Porto, mais praias, a ponte 25 de Abril, uma vista efémera da charneca alentejana, as ondas gigantes da Nazaré, Alfama, os balões de S. João, falésias marítimas da Madeira, o Pico, mais praias, a Ribeira no Porto, o terreiro do Paço, uma vista fugaz do Douro e, já se sabe, mais praias. Eis a que se resume o país, segundo o aludido Instituto de Portugal. Liderado por um idiota, com aspecto de boy, a julgar pela entrevista que ontem deu na TVI24. Segundo estas luminárias, Portugal pode ser encolhido numa colecção de posters do paraíso, em versão photoshop. Não um país, mas um produto. Não um mosaico polícromo, mas um catálogo. Em que não há montanhas e áreas protegidas de cortar a respiração. Não há locais que já são ou deviam ser Património da Humanidade: Braga, Guimarães, Coimbra, Piodão, Sortelha, Tomar, Mosteiro de Alcobaça, Sintra, Évora, Castelo de Vide, Mértola, Horta, eu sei lá. Do resto, ou seja, 80%, nem vale a pena falar, pois não existe. Vive no limbo do esquecimento. A Guarda, por exemplo. Uma idade pacata, com um ar puríssimo, rodeada de cenários naturais que acomodam um turismo de montanha que faria do Lake District britânico uma banalidade, simplesmente não existe! Que raio de país/produto é este, que queremos mostrar a quem? Será que ninguém percebe que nem os imbecis ainda acreditam em ninfas a sair da água em praias douradas?
2. Não vou ao ponto de afirmar que, na escrita, o ESTILO é tudo. Longe disso. Porque o estilo vai muito além da escrita. Está antes, durante e depois. Não é a combinação repetida de certas palavras de belo efeito, de modo a que nada signifiquem, como ironizou Herberto Helder, no conto homónimo de “Os Passos em Volta”. Olho para o estilo enquanto alquimia. Que reúne a disciplina e a necessidade. Que confere singularidade e leveza àquilo que toca. Que não deixa nada ao acaso. Sim, é tudo isso. Mas a sua concretização é pessoal, única. Alia o apuramento vigilante da forma, com o vigor cristalino das ideias que transporta. Emagrecendo o verbo, retira o que está a mais, deixando que a luz passe e possa ser admirada pelo leitor. Colocando espessura, filtra essa luz, criando uma penumbra onde o leitor se perde e, quiçá, se encontra.
3. Com o tempo, percebe-se que a pandemia se tornou uma questão política. Nem tem o grau de letalidade de outros surtos. Mas serve perfeitamente os propósitos de quem ocupa o poder. Suspender algumas liberdades e a actividade económica é o sonho de qualquer Governo formado por uma força política que se sente confortável tomando o estado de assalto e distribuindo benesses. O PS encaixa neste perfil como uma luva. O alarme social, instigado pela comunicação social, como que entorpece a massa crítica, fazendo-nos entrar numa espécie de letargia suplicante. Costa adora este assistencialismo generalizado. Pela minha parte, tem-me assustado mais não poder tratar de uma dor de dentes, ou contrair uma doença “normal”, do que propriamente a eventualidade de contrair a Covid-19.
4. A propósito da morte de escritora Maria Velho da Costa, passou há dias, na RTP M, uma entrevista feita por Fernando Assis Pacheco em 1975. Tenho um fascínio especial por estas peças documentais de outras épocas. Assis Pacheco, o intelectual cabeludo, vagamente suicidário, proudoniano. Sabendo alternar uma simpatia melíflua pelo feminismo com a virilidade revolucionária. Barba desleixada. Camisa com golas generosas. Calças à boca de sino. Um desmazelo na imagem e uma displicência no discurso que compõem uma época. A escritora, sem maquilhagem, olhar profundo, sofredor. Uma monja laica, que em vez de votos a Deus, os fez aos amanhãs que cantam… Vagueando à procura da sua consciência de classe. Uma auto flagelação íntima para quem vem de uma burguesia literata e com anseios progressistas. O drama das miúdas que iam espreitar os jardineiros ao fundo do quintal, quando vinham do colégio particular. Eram os anos da brasa. Ou de chumbo. Escolham. O mundo era bastante mais vertiginoso. Inocente. A preto e branco.
5. Um idealista é uma criança descuidada, mas firme na sua ambição. Um sonhador é como uma vela que se vai consumindo lentamente e no final da festa se apaga. Embora cintilando a glória de uma generosidade sem audácia. O diletante, por sua vez, é um imitador. Prefere quase sempre o glamour do idealista, em vez do funambulismo do sonhador. Lembremo-nos do tremendo Ega, de “Os Maias”. Um homem do mundo, mas sem mundo para se equilibrar. Uma promessa de talento eternamente adiada. Portanto, o diletante é escravo do destino que criou para si. Persegue a forma, crendo que é o conteúdo. Fica sempre a meio do caminho que ele pensa ter chegado ao fim, para logo começar outro. Por isso, usar as vestes do idealista pode ser-lhe fatal. O idealista é o escravo forro que se libertou do seu destino. Mais ninguém, senão ele, provará os frutos mais doces, descobrirá música no crepitar do fogo, ou tingirá de oiro a crueldade com que o mundo o põe à prova.
6. Por fim, mas não menos importante, não podia esquecer os 20 anos deste jornal. Que se tornou, com toda a justiça, uma referência da imprensa local, não só na região mas, atrevo-me a dizer, a nível nacional. E de que sou colaborador permanente desde há 18 anos. Parabéns a toda a equipa, na pessoa do seu director e fundador.

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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