Não percebo porque vão de viagem milhares de pessoas fazer solidariedade à pobreza. O que mais me fascina é um grupo europeu impregnado das regras de higiene, segurança, rotulagem, cumprimento de protocolos querer chegar a um espaço trágico e ensinar a fazer bem, a fazer “à europeu”. Um lugar de pobreza lava as luvas, lava as compressas, esteriliza as seringas de vidro, passa na máquina as ligaduras e se possível aproveita os gessos. Por vezes nem para isto têm tempo ou condições. Nem sempre há água, nem sempre há luz. Não há dinheiro, dificilmente há registos, risivelmente se preocuparão com os prazos de validade ou com a violação da embalagem. As estruturas para a qualidade como a GS1 ou o Infarmed, ou as instituições que querem garantir segurança, como entidades reguladoras, não cabem nesses lugares que ainda são o maior número de países do mundo. Ninguém vai depois de trauma em ambulância, atiram-no para uma “caixa aberta” e sem qualquer colar ou plano duro. É neste dantesco cenário sem regras, sem protocolos, sem linhas de orientação que surgem os condutores da solidariedade transportando caixas embaladas, com códigos de barra, com QRS com GTIN, etc. Os arautos da sociedade segura vão para onde Deus ainda não fez as pazes com a humanidade, onde os rios sobem mais que as casas, onde a manada desceu para a barragem que rebentou, onde os mortos não têm registo nem bilhete de identidade. A graça está em chegarem com material descartável, com embalagens protocolizadas e caírem no território do caos. Uns chegarão com paludismo e chorarão a aventura a vida toda. Outros sairão indignados daqueles lugares que não querem “aprender”. Até a solidariedade pode ser uma treta se não se usar de bom senso.