O dia de trabalho costumava levar tanto tempo a começar como a sala de aula a encher-se de estudantes. Vá lá saber-se porquê, ou até nem seja preciso, as segundas costumavam ser maiores que as quintas-feiras e, entre um dia e o outro, o ar estremunhado, de quem tem outras coisas em que pensar, além das lições entrecortadas pelo vaivém da porta de mola, ia-se atenuando em sorrisos cada vez mais abertos. 13.465 dias assim começados escavam em qualquer professor mossa tal que se torna difícil preenchê-la com um simples conversar para um ecrã sem tamanho sequer para albergar além de 32 caras reconhecíveis. Aquilo, parece que inventado por via da pandemia, no início até parecia filme de ficção científica. No fim, já não parecia nada e só já se ansiava pelo fim do confinamento para que tudo voltasse ao normal. Porém, ninguém volta ao que acabou e o tal normal, tivesse sido o que quer que fosse, já não é. Perante tal perspetiva, dá em sentir-se zangado. Ele e todos os outros colegas. Por não poderem queixar-se dos alunos que nunca mais chegam às aulas e, particularmente, por não poderem eles mesmo anotar a giz no quadro preto, que até é verde, cada “atrasadela” e outras diatribes que tais. Zangam-se os alunos, uns mais que outros, por não poder ir acabar o sono ao anfiteatro da faculdade. São assim as mudanças de vida, provocam zangas a toda a gente sem se perceber porquê. Embora neste caso se desconfie que seja por se sentirem a ficar híbridos, como o milho ou a mula. Nada que impeça as aulas, desde que não sejam práticas, de continuarem à distância. O que depois de explicado, por quem alega perceber muito destas coisas, até acaba por se compreender.
Agora, antes do trabalho, que é como quem diz antes de se sentar à frente do computador, já o frigorífico relembrou que não há leite e mal pode escolher entre um iogurte e outro antes que o dito desate em miadelas metalizadas. Melhor será fechá-lo, não vá o aparelho melindrar-se de mais e deixá-lo sem almoço. Entretanto, já as cortinas se tinham voltado a correr, porque os raios de sol, em demasia, provocavam o aparelho do ar condicionado que ameaçava disparar contra o calor. Ao lavar os dentes, dá com o espelho da casa de banho a acender-lhe palavras, tinha dado conta que temperatura corporal do professor andava, há três dias, acima de 37,5 graus. A caminho do quarto, combina com o Centro de Saúde um encontro com o médico de família que, poucos minutos depois, sentado numa cadeira a sobrevoar meia cama e meio tapete, acaba por lhe receitar uns comprimidos que, daí a nada, a farmácia da esquina enviará. Reza para que que não seja um “drone” a trazer-lhos. Depois de tanto tempo enfiado em casa, a falar como que para as paredes, haverá de saber bem, trocar um “bom dia” com o estafeta. Enquanto os comprimidos chegam e não chegam, dispõe-se a tomar um café sentado na varando da cozinha. Do outro lado da rua, um vizinho acena-lhe, efusivamente, fazendo-o lamentar, ainda mais, o preço a que chegaram os abraços. Vá lá, com sorte, haveria de vir um estafeta bater-lhe à porta.
Os dispensáveis
Agora, antes do trabalho, que é como quem diz antes de se sentar à frente do computador, já o frigorífico relembrou que não há leite e mal pode escolher entre um iogurte e outro antes que o dito desate em miadelas metalizadas.