A crescente difusão da Covid-19 por todo o planeta é preocupante. Alguns consideram que o alarme criado é apenas uma “cortina de fumo” para esconder outros problemas; outros analisam o problema de forma algo ingénua, como se o vírus fosse apenas algo que faz parte da natureza, sem qualquer relação direta com o sistema social. Ora, a meu ver, ambas as posições estão erradas.
Mesmo que uma parte dos media adira a teorias da conspiração e a todo o tipo de especulações sobre as origens e consequências desta crise, e que alguns governos possam tentar ocultar ou criar factos sensacionalistas, é impossível negar as evidências. A realidade que nos atropelou é de uma gravidade extrema.
Com o número de mortes e de infetados a crescer vertiginosamente na maior parte do mundo, já se percebeu que um fenómeno natural – a mutação de um vírus e a sua entrada e disseminação numa outra espécie – foi altamente facilitada pelo sistema global em que hoje vivemos. Não esqueçamos que esse sistema, a que muitos chamam globalização, assenta em graus acentuados de competição e de barbárie social, fruto de valores que colocam no pódio a competição, o esmagamento da concorrência, e a finança como a divina religião do momento.
Incapazes de perceberem o que aí vinha, e sempre descrentes em quem em devido tempo os avisou, a generalidade dos líderes mundiais desconsiderou o perigo real do vírus. Agora, correm atrás do problema. As consequências serão devastadoras. Há inclusive peritos que afirmam, sem quaisquer reservas, que as sequelas que o vírus deixará nos infetados será irreversível. Que ele, sem cura ou com ela, irá permanecer por muitos e largos anos entre nós, ninguém duvide, já que os cerca de 8 mil milhões de almas que pululam por aí não vivem todas no mesmo planeta material e financeiro.
Este é e sempre será o maior problema desta pandemia – a saúde pública. É só olhar para os números: mais de 50 mil mortos e de um milhão de infetados em todo o mundo. Para a semana será muito pior. E na seguinte ainda pior, numa progressão infernal que teremos dificuldade em digerir. Por isso, se ao nível da saúde os problemas são aqueles que começamos a perceber, ao nível do próprio sistema internacional as consequências serão devastadoras. Arriscamos assistir – a vários níveis – a uma barbárie que a Humanidade recente nunca vivenciou, de que os episódios de pirataria de Estado praticada sobre aviões com máscaras e outro equipamento médico são apenas um vislumbre.
A vulnerabilidade e decadência do sistema manifestar-se-á de forma cruel, com ataques às condições de trabalho, aumento do desemprego estrutural, violência e mortes crescentes, exploração, miséria e fome de milhões de pessoas. Esta pandemia ocorre quando algumas economias – como era o caso da norte-americana – estavam a atingir o pico e outras já se encontravam há algum tempo em fase de estagnação. Na verdade, já não existia crescimento económico líquido, dado que o aumento da dívida excedeu o crescimento económico nas principais economias mundiais.
Por isso, uma recessão era um cenário inevitável já antes do surto. Estruturalmente, sofremos de um problema de “crescimento eternamente lento”. Dados demográficos de envelhecimento, dívidas acumuladas astronómicas e mudanças tecnológicas insuficientes constituíram-se num problema para todas as tentativas de reversão da prevista desaceleração económica. Estamos e estaremos num processo dicotómico grave de “estagnação” e de “inflação” caracterizado por queda da procura, da atividade comercial, da produção, etc., aumentando em simultâneo o preço médio dos bens e serviços (inflação).
O que aí vem não vai ser bonito de se ver. Há um velho ditado que afirma que em casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão. O problema é que uma boa parte do mundo se arrisca a nem sequer ter casa aonde não haver o tal pão…