Psicanálise dos contos de fadas (que nos impingiam)

Um dos meus passatempos preferidos durante este confinamento causado pelo estado de emergência global tem sido ler e ouvir as ideias feitas mais repetidas da última semana e compará-las com as ideias feitas mais repetidas dos últimos anos. É fascinante ver como chavões postados no Instagram para se parecer moderninho antes e os escritos agora são mais incoerentes do que o presidente do Benfica em entrevistas na televisão.
Nas discussões sobre a eutanásia, uma das prioridades políticas da esquerda portuguesa pré-vírus, uma jovem mulher foi muito enxovalhada pela opinião pública dominante por empunhar um cartaz que dizia “Não matem os velhinhos”. Imagino como se deve sentir ambivalente tal moça nesta altura. Triste, porque há um vírus que mata mesmo velhinhos sem lhe dar atenção, e feliz, porque todos os que a apoucaram rasgam hoje as vestes com a mesma frase que antes parodiaram. Hoje toda a gente levantaria esse mesmo cartaz. Para azar da jovem, não podem sair à rua todos juntos.
Há quem já se congratule com o aumento da natalidade no fim deste ano, resultado do confinamento. Eu teria menos euforia. Por um lado, os animais em cativeiro tendem a procriar menos. Por outro lado, vamos todos ficar mais pobres, e com certeza os progressistas não se terão esquecido do mantra com que nos catequizavam, repetindo que as mulheres precisam de interromper a gravidez por não terem condições económicas para sustentar mais filhos.
Este coronavírus parecia o sonho húmido dos catastrofistas da demografia, sempre alarmados com a pirâmide etária causada por baixa natalidade e longa esperança média de vida. Alguns destes frequentam os governos europeus. Seria de pensar que veriam nisto uma boa oportunidade de resolver o problema do envelhecimento da população com que nos maçavam com muita regularidade. Afinal não viram.
O nosso primeiro-ministro valentão exclama agora que as vidas não têm preço. Há 20 anos, o mesmo António Costa era ministro da Justiça quando o Estado português recorreu de uma sentença judicial que condenava o Estado a pagar uma indemnização aos pais de duas crianças que haviam morrido nas piscinas do Aquaparque. Que coerência. Como as vidas não têm preço, não adiantava pagar indemnização aos pais. Só faltou dizer-lhes: “Em vez de vir para a piscina, tivessem ficado em casa em confinamento”.
Os pedagogos podem tirar desta situação um grande ensinamento. Tanta conversa sobre os afectos, e afinal é o medo o grande catalisador social. Razão tinha o Bruno Bettelheim. Se não há uma bruxa, ou uma madrasta, que seja um coronavírus a mandar a Cinderela para casa ou a pôr a Bela Adormecida de cama.

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Nuno Amaral Jerónimo

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