O peso das brincadeiras de infância na competência dos autarcas

Escrito por Fidélia Pissarra

“Antes de mais, talvez convenha evidenciar perante os mais novos que, antigamente, na Guarda, os brinquedos eram vendidos em lojas que não eram só de brinquedos.”

Naquela rua de Pontevedra, de lojas protegidas pelos balcões em que se anicham, o que sobressai não são as plantas silvestres e espontâneas que despontam das frestas abertas pelo tempo e pela ausência de habitantes nalgumas das casas dos seus dois lados. O que ressalta à vista de quem passa é a firmeza e o orgulho com que, fiéis a uma época e a um tipo de clientes que quase já não existe, permanecem abertas ao público a meia dúzia de lojas seculares que não se deixaram devorar pelos novos modos de consumo.
Entre surpreendidos, pelas nossas próprias memórias, e apostados em adquirir dois dos brinquedos de corda expostos numa das suas múltiplas montras, mal entrámos naquela loja, que mais parecia ser de chapéus e camisas do que de brinquedos, deparámo-nos com uma luxuosa exposição de miniaturas de carruagens dos comboios de distintas épocas. Antes de mais, talvez convenha evidenciar perante os mais novos que, antigamente, na Guarda, os brinquedos eram vendidos em lojas que não eram só de brinquedos. Ficam, assim, a saber que os brinquedos, com que as crianças da minha geração se entretinham nos dias de chuva dos nossos longos Invernos, davam em ser comprados simultaneamente com cadernos, cafés, alguidares, chapéus e gravatas, em papelarias, mercearias, drogarias, chapelarias, camisarias ou, excecionalmente, com um ferro de engomar, na cave de uma loja de eletrodomésticos, mas nunca em “brinquederias”.
Voltando, agora, às miniaturas, à escala, das carruagens expostas, em escaparate a condizer, na loja de Pontevedra: que não, não estão à venda. São só para exposição e, transformadores, também já não há. Quando muito, por mil e quinhentos euros, pode-se adquirir a única miniatura de máquina de comboio ali existente e, por muito menos, uns troços de linha, das várias escalas, guardados nas respetivas caixas na última prateleira da estante do lado esquerdo. Um bocadinho desiludidos, resta-nos imaginar a sorte que não tiveram os que ainda puderam e, provavelmente, continuam a poder “brincar” com comboios em miniatura movidos a energia filtrada por um transformador, por entre montanhas e cidades montados nos chãos das salas maternas. A julgar por aquela coleção, naquela loja de Pontevedra, hão de ter sido muitas as crianças dessa cidade, conhecida por se ter tornado um modelo internacional de planeamentos urbano, que o puderam fazer.
Hipótese que bem nos poderá levar à questão: qual a influência das brincadeiras de infância na construção da personalidade de um autarca e dos cidadãos que o elegem? Poderá alguém sem qualquer referência de relevo gerir algo tão complexo como um município? Poderá alguém que, na infância, não tenha construído uma cidade, uma paisagem onde incorporar o percurso do seu comboio de brincar ou, tão só, uma cidade construída com peças de Lego, conseguir conceber uma cidade real que seja apelativa para se viver e fruir? Se calhar, pode, mas só se se fizer rodear de gente que o tenha feito. Seja como for, bem podemos concluir que a ausência, desde sempre, de lojas, que vendessem miniaturas de comboios e os respetivos complementos, na Guarda, bem pode explicar o estado a que esta chegou: uma cidade sem sentido e completamente anacrónica.

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Fidélia Pissarra

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