Escrevo esta crónica já sabendo que Joe Biden vai ser o 46º presidente dos Estados Unidos da América do Norte. Desde a Segunda Guerra Mundial só três candidatos perderam a sua candidatura à reeleição: Gerald Ford (que substituiu Nixon a meio do mandato), Jimmy Carter e George HW Bush. Este facto, demonstrativo da dificuldade em derrotar alguém já presidente, torna a vitória de Joe Biden ainda mais notável. Existe ainda a possibilidade de o partido democrata conseguir a maioria no Senado. Mas este desenlace, um alívio para uns ou euforia para outros, não deve fazer-nos esquecer que Trump teve o apoio de 73 milhões de americanos, subindo cerca de 4 milhões em relação à votação com que foi eleito em 2016, e que para estas pessoas a sensação é de frustração e raiva. Qual a explicação para o fenómeno que levou Trump ao poder e uma quase segunda vitória?
Trump e os seus apoiantes são contra a ciência, os factos científicos e a verdade. Isto teve consequências terríveis na abordagem à pandemia do século ou às alterações climáticas. Trump fugiu ao pagamento de impostos. Insultou e desdenhou dos seus adversários. Recorreu como ninguém à mentira. Retirou o seu país da Organização Mundial da Saúde. Rasgou o Tratado de Paris sobre o clima, reverteu leis de proteção ambiental e mostrou total indisponibilidade para apoiar o esforço para diminuir a emissão de gases de efeito de estufa, preferindo abraçar e promover a poluente indústria de combustíveis fósseis. Tomou partido pelos israelitas contra os palestinianos e celebrou acordos com estados fantoches árabes para lhes vender armas. Aumentou o florescente comércio de armas nos EUA, quer para uso interno, quer para o conflito do Iémen.
Trump soube ler como ninguém o ressentimento da classe média baixa e das famílias órfãs da indústria decadente no seu país e interpretar as tensões raciais que a crise fez aumentar. Mas a grave crise social e económica que o país atravessa não explica tudo. Os EUA são fruto de um projeto colonial britânico e a sua independência foi gizada por uma elite europeia ou pelo menos europeizada e identificada com os valores da velha Europa, incluindo os privilégios de classe. Aliás, esta situação é comum aos países de todo o continente americano. Na sua maioria são, ainda, sociedades descendentes de contextos escravocratas ao tempo da independência. Nestas sociedades, o sistema de produção e todas as hierarquias são criadas a partir da existência de um tipo de trabalho, exercido por pessoas que não têm quaisquer direitos sociais ou de cidadania.
No seu caminho para a modernidade, o trabalho não transitou de imediato para o trabalho livre, assumindo variantes que passaram pelo trabalho serviçal, sobretudo nas grandes obras públicas ou nos momentos seguintes à libertação das pessoas escravizadas. A assimetria entre a elite e os descendentes de antigos escravos e os imigrantes que, entretanto, forneciam novas alternativas à produção, foi sempre muito marcada e muito lentamente refletida nas mudanças estruturais destas sociedades. Como tal, também se caracterizam pela pós-colonialidade. As contradições herdadas de uma sociedade colonial de características escravocratas dificilmente se apagam e tendem a emergir periodicamente, apesar da luta pelos direitos cívicos ser já longa. A forma como se classificam pessoas em nativos americanos, afro-americanos, hispânicos, etc., apesar de serem naturais dos EUA, revela a marca diferenciadora segundo a pretensa origem do indivíduo, relegando-o de imediato para uma determinada franja da sociedade. É, também, de notar que os únicos que carecem de classificação são os euro-americanos, desde que não sejam latinos.
Toda esta diversidade colocou entraves à homogeneização da sociedade norte-americana, apesar desse sonho – o sonho americano de prosperidade, liberdade e concretização individual. O sonho americano desvaneceu-se, mas as suas contradições e promessas ainda agitam o mundo que segue atentamente o que ali se passa. Nunca nenhum país passou tão rapidamente de uma posição de subalternidade colonial para a liderança mundial, tornando tudo novo e promissor, e fazendo acreditar que o sonho americano poderia chegar a todos, mesmo sem mudanças estruturais na sociedade e na mentalidade. Tal não aconteceu, como se percebeu a partir da década de 60 do século passado. Depois do sonho, fica a realidade, porque a verdade é que os EUA ainda não permitiram que o sonho americano se democratizasse. É uma tarefa mais árdua do que manter a liderança internacional em momentos de crise. Passa pela igualdade de oportunidades, pela saúde, pelo emprego com rendimento justo, pela segurança, pela educação e pelos direitos humanos. Conseguir tudo isto, ou pelo menos recolocar os EUA no lado certo da história, é o desafio que Biden enfrenta.