Poucos meses depois de médicos e utentes da ULS da Guarda terem denunciado, via televisão, a situação caótica e alarmante em que se encontram determinados serviços e o funcionamento da própria Urgência do hospital, eis que nova denúncia rebenta com estrondo. Um chefe da equipa de urgências a funcionar na noite de 29 para 30 de novembro de 2021 colocou um aviso, na porta das ditas urgências, a anunciar que a partir da uma da madrugada, e até às oito da manhã, só haveria atendimento para doentes em casos de risco de vida, dado não existirem médicos para assegurar convenientemente o serviço.
A tese construída pela ULS da Guarda para explicar esta situação foi “apenas” a da existência de uma situação pontual. Ora, é do conhecimento público que isto só aconteceu exatamente por estas lacunas se estarem a tornar recorrentes e rotineiras, inclusive com doentes, em desespero, a terem de procurar outras paragens. A verdade é que o SNS está um caos e na Guarda está pior. E isto não acontece só porque, em 1985, Leonor Beleza, ministra da Saúde, resolveu liquidar as carreiras médicas com o argumento de haver clínicos a mais no sistema. Já se passaram 36 anos e ninguém mudou verdadeiramente o rumo de destruição do SNS então traçado.
A falta de uma gestão qualificada dos hospitais e Unidades Locais de Saúde tem sido gritante. Continuam a predominar os “boys” partidários, com a agravante, no caso da Guarda, de alguns deles terem sido criminosos condenados pelos tribunais e outros, no mínimo, acusados. A população da Guarda, envelhecida e pobre, é especialmente vulnerável a esta espécie de demomáfia que infeta todo o sistema e se regozija com galardões internacionais de gestão hospitalar, paridos ao melhor nível das sociedades amigáveis de palmadinhas nas costas.
No caso da Guarda, para além de tudo o que falhou antes, falha tudo. Não é apenas a questão das instalações físicas mal dimensionadas, da falta de especialistas, do envelhecimento do corpo médico que acrescenta crise à crise. É também uma questão de incapacidade gestionária. Sobretudo numa crise pandémica como a que atravessamos, mais do que predisposição para lamber as botas aos chefes ou para se fazer contas a pensar na carreira política, é preciso perceber-se que estamos em guerra. E numa guerra, mais do que o número de soldados e a sua juventude e capacidade para o combate, interessa a sua qualificação e a colocação do soldado certo na posição adequada.
A urgência pública é hoje, em Portugal, o delta aonde desaguam os rios de todos os problemas. Problemas esses que começam nos cuidados primários, que muitas vezes não obtêm das especialidades hospitalares as respostas de que necessitam em tempo útil para os seus doentes. Quando esses problemas se agravam, a única solução é mesmo a Urgência. E pior do que isso, na hipótese de esta opção resolver, ainda que de forma casuística e através de um método errado, o problema imediato daquele doente, fracassa depois muitas vezes a integração com os necessários cuidados continuados pós-urgência.
Portugal sofre de um problema grave, que os políticos insistem em querer ignorar: o acentuado e fulminante envelhecimento da população, com todo o peso que esse fenómeno origina em termos sociológicos, económicos e sanitários. O orçamento para a Saúde não pode crescer a 1 ou 2% ao ano, quando os problemas crescem a 10 ou 20%. Ainda por cima quando esse orçamento é muitas vezes desbaratado pela ineficiência, má gestão, desorganização, e manobras de curto prazo para esconder o óbvio e empurrar os problemas com a barriga.
O papel, a rotina, a incompetência e o inferno
“A urgência pública é hoje, em Portugal, o delta aonde desaguam os rios de todos os problemas.”