Precisamente no dia em que faleceu Cruzeiro Seixas, a Câmara da Guarda anunciou que adquiriu o imóvel em ruínas que foi Casa quartel da Legião Portuguesa para ali instalar a Coleção Piné. A aquisição pela autarquia deste imóvel tem dois focos relevantes: apostar na requalificação do Centro Histórico, uma obrigação da autarquia, e a determinação estruturante pela capitalidade cultural da Guarda.
O património arquitetónico da cidade não é tão extraordinário que possamos ver cair casas de grande significado simbólico e riqueza patrimonial e arquitetónica. A “Casa da Legião Portuguesa”, frente à porta principal da Sé, é um imóvel há dezenas de anos abandonado – uma vergonha para a cidade – cuja recuperação se exigia há muito e que, finalmente, a Câmara adquire para reabilitar e afirmar como um marco na definição do futuro da cidade (estranhamente, o gabinete da presidência decidiu designar o imóvel de “casa da mocidade portuguesa”, o que, salvo melhor opinião, não corresponde à verdade, pois a mocidade, na Guarda, terá estado instalada na casa que um incêndio destruiu entre a Pensão Santos e a Torre dos Ferreiros e o “centro da mocidade portuguesa” terá ainda tido uma passagem efémera pelo Solar dos Póvoas).
Mas não basta comprar e projetar a sua requalificação. É preciso um plano que vá muito para além do betão. E a instalação da Coleção Piné naquele imóvel é uma excelente opção. A Guarda do futuro será uma cidade de turismo e cultura, ou não terá futuro. Se hoje a pandemia nos pode turvar a vista, olhar para o futuro é perspetivar o caminho que podemos percorrer. E trilhar o caminho da capitalidade cultural deve se uma aposta inquestionável – a Guarda pode ser capital europeia da cultura e pode ambicionar ter o seu património reconhecido como Património da Humanidade – essa será a grande alavanca económica.
No primeiro grande discurso de Álvaro Amaro aos guardenses (no Dia da Cidade) o então presidente da Câmara defendeu a aposta num grande Museu no Quarteirão das Artes. Toda a gente aplaudiu. Eu escrevi ( a 4 de dezembro de 2014 https://ointerior.pt/arquivo/museu-do-que/) que «a ideia de fazer um “grande” museu no centro da Guarda pode ser uma extraordinária alavanca para o desenvolvimento do centro da urbe». Mas, mais importante do que um grande museu, seria criar novos espaços de arte, novas centralidades de cultura, e defendi essencialmente um novo conceito, nomeadamente para a arte moderna. «E, sem querer ser minucioso em relação a outros pequenos detalhes (que os há), deixo uma nota para a reflexão dos leitores: a valência da ideia e a sua contextualização. Primeiro, fará sentido criar um «grande» museu “apenas” dedicado à história da Guarda, aos seus 815 anos? Não foi com o propósito de “contar” a história da Guarda e mostrar o concelho «de portas abertas», de forma «moderna», interativa, com uma linguagem juvenil, recorrendo ao multimédia e de forma «viva» e dinâmica que se instalou o centro de interpretação e espaço “para-museu” na Torre de Menagem (com filme em 3D!!)? Segundo, não faria mais sentido e não seria mais ambicioso e atual projetar um centro de arte contemporânea em vez de investir mais na museologia dos pormenores historiográficos e na narração histórica e factual? Não faria mais sentido investir no experimentalismo e nas artes performativas, na escultura moderna e na pintura de vanguarda, do que continuar com os olhos postos no passado e que não conquista novos públicos? Não fará mais sentido apostar em novos caminhos, novas sensibilidades e novas formas do que continuar amarrado à memória e ao relato dos tempos que já lá vão? E não seria também mais interessante meditar numa nova localização para um equipamento desta natureza? (neste espaço, mais de uma vez, defendi que faria sentido investir na Guarda num centro ou museu de arte contemporânea, fi-lo ao refletir sobre a impressionante metamorfose de Bilbao com a instalação do museu de arte contemporânea Guggenheim – realidade e transformação de que sou testemunha, pois residi naquela cidade basca durante mais de cinco anos – fi-lo a propósito do “murro no estômago” que António Piné deu aos guardenses ao “oferecer” a sua excêntrica e extraordinária coleção de pintura contemporânea à Associação Nacional de Farmácias em vez de a ceder à cidade onde viveu e ganhou dinheiro para adquirir tantas obras-primas, que podiam muito bem ser a base de um museu de arte contemporânea de grande qualidade na Guarda».
Esperemos que em 2023 o novo museu de arte contemporânea esteja aberto para podermos desfrutar, na Guarda, de uma coleção extraordinária e apreciar obras de Pablo Picasso, Salvador Dali ou Cruzeiro Seixas, Cargaleiro, Paula Rego, Vieira da Silva ou Júlio Pomar. O “regresso” da Coleção Piné à Guarda será um momento marcante para o próximo futuro da cidade e região. O porvir da Guarda passará por aqui. Pela requalificação do Centro Histórico e pela afirmação da cultura de dimensão internacional.