Num momento em que em Portugal morrem por dia 300 pessoas, vítimas de Covid-19, a gestão das vacinas passou a ser epicentro do debate público. Quando devíamos estar todos empenhados nos cuidados a ter, no distanciamento e nas medidas higieno-sanitárias a tomar, é o chico-espertismo e a corrupção que nos sacode. Quando devíamos estar preocupados com a melhor informação, igualdade de tratamento, profissionalismo, seriedade, respeito por todos e em especial pelos mais débeis, é o salve-se quem puder que toma conta do plano de vacinação.
Como tantas vezes aqui escrevi, a vacinação devia ter como primeiros destinatários os mais idosos. Os médicos e enfermeiros adstritos aos serviços Covid-19 – os demais deveriam ter ficado para uma segunda fase, pois nem todos os que trabalham em saúde estão em contacto direto com quem é portador do vírus. E o Presidente da República e o primeiro-ministro – porventura também os deputados, ou a Comissão Permanente da Assembleia da República. (Na Europa, cada país definiu as suas prioridades, mas todos apostaram num objetivo comum de vacinar os mais velhos até à primavera. Na Inglaterra, por exemplo, a Comissão para as Vacinas e a Imunidade estabeleceu como prioridade vacinar os idosos residentes em lares e respetivos cuidadores, todas as pessoas com mais de 70 anos e os que tenham doenças de risco, os profissionais de saúde que estão na linha da frente (que trabalham com infetados), com o objetivo de cobrir rapidamente os grupos que registam 88% das mortes. Nada mais óbvio, quando se pretendem salvar vidas humanas.)
Foi um clamoroso erro deixar de fora numa primeira fase os mais altos signatários da nação. E foi um erro ainda maior corrigir esse erro abrindo a vacinação a todos os “dirigentes” como prioritários. E é igualmente um erro admitir a impunidade a autarcas, órgãos socias das IPSS e todos os que ilicitamente já foram vacinados. Mas o nacional-porreirismo não pode passar impune. Tanto circo com a vigilância policial na chegada das vacinas, para depois todos os habilidosos deste país saltarem a fila e serem vacinados à frente de quem devia ser efetivamente a primeira opção, os idosos, sem consequências.
O Governo vai de erro em erro na gestão desta fase da pandemia (o milagre da primeira fase foi mais fruto da sorte e do medo dos portugueses, que em abril não saíram à rua, do que da boa gestão da governação) e, ao menos, nas prioridades da vacinação, exige-se seriedade e profissionalismo e a reposição de um mínimo de decência. O Governo não tem como decretar bom senso, mas devia definir com critério o plano de vacinação. O resto devia ser a consciência de cada um… Portugal está em 33º lugar no ranking da corrupção porque o nepotismo, a cunha, o amiguismo, o “jeitinho”, o contornar as regras faz parte da nossa cultura. Pois. Mas desta vez não devia ser assim. A decência e o respeito pelo outro, em especial pelos mais velhos, devia obrigar-nos a atuar com inequívoca seriedade e igualdade. Agora, os vigaristas, os “chico-espertos”, têm de ser condenados, pela sociedade e criminalmente – porque usurparam um bem preciso e, de acordo com o artº 372º do Código Penal, terão praticado o crime de recebimento indevido de vantagem, pois, «no exercício das suas funções ou por causa delas (…), com o seu consentimento ou ratificação, solicitar(am) ou aceitar(am) para si ou para terceiro, vantagem (…) não patrimonial, que não lhe(s) (era) devida», sendo, na interpretação do professor de Direito André Lamas Leite, puníveis com prisão até cinco anos ou multa até 600 dias. O que nasce torto, tarde ou nunca se endireita… o Governo não teve critério e agora vamos ter uma caça às bruxas à procura de quem saltou o muro e se vacinou indevidamente – por todo o lado vamos descobrir que dirigentes e familiares de dirigentes de serviços sociais ou de saúde foram vacinados indevidamente.
PS: «Sobrou uma vacina! Não se ia deitar para o lixo!», é a frase justificativa que mais se tem ouvido, com convicção e até alguma arrogância. O espertismo chegou a este ponto, seja o diretor do INEM, que por falta de outras pessoas na lista mandou vacinar todo o pessoal da pastelaria onde ia todos os dia tomar café, ou a médica que mandou vacinar o marido que estava no carro.
As vacinas da Pfizer têm uma validade de 120 horas (5 dias) após se iniciar o processo de descongelamento. Ou seja, quando sobra uma dose após abertura da ampola pode perfeitamente ficar suspensa a vacinação seguinte e esperar algumas horas (após reconstituição a vacina tem 6 horas de estabilidade) até que chegue uma pessoa prioritária ou mandar chamar (idoso, técnico de saúde, bombeiro, policia, etc) o que é inaceitável é este regabofe de saltar as regras.