Indefensável

Escrito por Fidélia Pissarra

«A culpa, sempre tão individual em questões de criminalidade comum, pretende-se, neste caso, dos que “esqueceram” a metade interior do país»

No dia 24 de janeiro confirmou-se, tal como se desconfiava, que há uns quantos portugueses que se identificam com a narrativa classicista do “nós” e “eles”. Não no sentido de classe privilegiada versus classe desfavorecida, porque isso requer alguma consciência da coisa, mas mais num sentido clubístico, ou de tribo, se preferirem. Neste mundo, do nós somos bons, honestos, cumpridores e patriotas e eles são maus, desonestos, prevaricadores e antipatriotas, parece não haver quem convença estes desprovidos de qualquer consciência social de que não será bem assim. A razão parece ser muito simples: não querem ser convencidos de nada. Sentem-se donos da verdade e, embora essa circunstância seja ruim que chegue, há ainda quem a queira piorar. Perante o óbvio, o que é que se tem feito? Nada, além de tentar desculpabilizar o racismo e a xenofobia dos eleitores da extrema-direita com complexas operações de branqueamento da consciência alheia. A culpa, sempre tão individual em questões de criminalidade comum, pretende-se, neste caso, dos que “esqueceram” a metade interior do país. Desses e dos “corruptos”, que para estes pretensos donos da verdade não há cá dúvidas, nem meias medidas, é bom ou mau e eles são sempre do bem. Sucede que, consciente ou inconscientemente, os que, de alguma forma, se têm desdobrado em explicações para o alegado descalabro democrático se têm esquecido de uma data de pormenores.

Começam por esquecer que os partidários do classicismo se assumem, indubitavelmente, como tal e, justificando-os, acabam por legitimar os desvios democráticos com argumentos que os próprios contrariam. Pelo meio, ainda os tratam como inimputáveis, mas sobre isso ninguém parece querer acusar o toque, e acabam a normalizar a sua existência como se fizesse parte do jogo democrático. Ora, não só não precisam que lhe justifiquem coisíssima nenhuma, como são perfeitamente responsáveis e ameaçam mesmo a democracia, que, aliás, não apreciam nem querem. Não a apreciam, porque, na sua desmedida arrogância, acham que só eles merecem ser protegidos pelo Estado, não a querem, porque, na sua inominável ignorância, não percebem que essa proteção é suportada, precisamente, pela democracia. Nunca é por acaso que, quem mais beneficia de subsídios, seja quem mais se insurja contra o facto de outros também beneficiarem. Os que não conhecerem pelo menos uma pessoa que, beneficiando do fruto dos nossos impostos, vocifera constantemente contra a “subsidiodependência” daqueles a quem renegam, bem pode atirar a primeira pedra. Por isso, considerar que este meio milhão de pessoas corresponderia às “vítimas” do sistema, equivale mais a identificar-mo-nos com o olhar enviesado que dele têm do que com supostas bonomias de pendor democrático. Bem, também poderá dar-se o caso de se ter de ficar tão chocado com o facto de convivermos com quase meio milhão de fascistas, que seja preferível, a bem da saúde mental, tratar de o disfarçar. O problema é o de, na eventualidade de deixarmos que estas ideias se continuem a disseminar, não haver disfarce que nos valha. Por essa altura, nem a possibilidade, evidente, de prejudicarem mais quem as defende, do que quem as contraria, nos repousará a consciência de nada termos feito.

Sobre o autor

Fidélia Pissarra

Leave a Reply