“O Inverno no teu olhar”: dez anos depois a obra de ficção mantém a sua pertinência e frescura

Escrito por Thierry Santos

“Escrito num estilo fluido e envolvente, construído com elipses narrativas, cortes e vínculos entre cenas e figuras do enredo, o romance é composto de um “prólogo” e quatro capítulos”

Em 2014, Carlos Adaixo trouxe a lume o seu segundo romance, em aliciante edição de autor. A narrativa acompanha determinados períodos temporais, ao longo de 22 anos, da vida de um grupo de homens e mulheres que se cruzam nos anos 90 nas lides académicas. Uns cursam Medicina, outras, Direito, Engenharia Química ou Belas-Artes. Fazem-se amizades para a vida, muitos chegam a casar e a constituir família. Conquistam profissões e carreiras bem pagas, a década aparenta o bem-estar económico. O círculo social cresce, evolui, mas nem sempre como seria de esperar. A vida, como sói dizer-se, é uma caixinha de surpresas.
Através da galeria formada nomeadamente por Patrícia, a discreta e briosa, Isabel, a ciumenta, Inês, a criativa e descontraída, Júlia, a mulher madura, sensual e intelectual, Olga, a devoradora de homens, e Beatriz, a colecionadora dos namorados das amigas, encena-se o poder transformador da força e resiliência que caracterizam mulheres, donas da própria vida. A fragilidade masculina é representada por Raul, o «workaholic», Luís, o resgatado e distraído, o «amoroso Eduardo», amante de Patrícia, e Manuel, um simpático Don Juan, incorrigível quebra-corações. A ação desenrola-se numa cidade sem nome, que, pela fisionomia sugerida, poderia ser Lisboa ou o Porto.
À partida, o romance configura-se como uma crónica de costumes, que observa de perto o quotidiano de indivíduos representativos de um grupo social numa dada época, descortina condutas e discursos que a sociedade considera aceitáveis ou não, refletindo deste modo sobre comportamentos e factos sociais indiscretos. Com leveza e ironia, a narrativa retrata os ares de um tempo português, das peripécias vividas por esse grupo urbano de classe média/ média alta, desde a saída da universidade ao patamar dos quarenta e cinco anos de idade.
Na verdade, trata-se de um romance de geração, a do próprio autor – nascido na viragem dos “Baby Boomers” para a Geração X, como esta é vulgarmente apelidada –, que reporta a atmosfera definidora daqueles anos: noitadas estudantis, engates numa discoteca, a libertinagem, a relação entre uma mulher madura e um homem 27 anos mais novo, o preconceito sexual, o fim da vida universitária, a maternidade, o impacto das redes sociais na vida das pessoas, a saúde mental, relacionamentos amorosos complicados, o processo de desamor, a fatalidade de uma doença oncológica e, finalmente, a sensação de ser ora especial, ora um falhado, ora um falhado especial.
Deixando de fora, por opção, alusões a acontecimentos relevantes ocorridos em Portugal, na Europa ou no mundo durante os anos 1992 e 2014, o foco narrativo incide apenas em espaços do privado, a sós ou entre amigos, onde a vida íntima se desenrola. Não se comenta as alterações climáticas à escala global, não se discute a vida política do país, mal se alude ao mundo do trabalho onde os protagonistas exercem a sua atividade profissional.
No fundo, a ficção, que gira principalmente em torno daqueles três amigos médicos, Raul, Luís e Manuel, versa sobre escolhas e renúncias individuais, a erosão nas relações amorosas e conjugais, as exigências dos tempos atuais, a busca do equilíbrio entre a vida pessoal e profissional, bem como a solidão ontológica de cada um neste mundo.
Escrito num estilo fluido e envolvente, construído com elipses narrativas, cortes e vínculos entre cenas e figuras do enredo, o romance é composto de um “prólogo” e quatro capítulos: “Com a Primavera nos corpos (1992)”, “O Verão dilata a vida (2001)”, “Imersos num Outono melancólico (2009)” e “O Inverno no teu olhar (2014)”. Como se depreende da leitura dos títulos dos capítulos, as personagens adaixanas, inicialmente entusiasmadas pelas boas perspetivas de vida, deslizarão para um certo desencanto que o título do livro anuncia.
Não há dúvida de que a obra exprime a íntima mundividência do autor: nem tudo na vida corre como planeado, Deus saiu de cena, o amor já tende para a liquefação e falhar faz parte da aventura de viver, mas, enquanto houver vida para ser vivida, aceite-se as lições que oferece e aprenda-se a ressignificá-la.
Ao propor pistas para a resolução de conflitos afetivos e a possibilidade de autotransformação da condição humana, a narrativa em apreço aproxima-se do discurso da literatura de autoajuda: a metáfora das quatro estações da vida vem, naturalmente, sugerir que, depois das autorreflexões de inverno, com a primavera, consegue-se dar a volta por cima. Daí também a exortação “see the lights” que despertam, orientam e iluminam o ser humano de que fala a canção dos Simple Minds, banda icónica dos anos 80/90, cujo primeiro verso inspirou o título do romance.
Em paralelo ao epílogo de “Os Maias”, em que Carlos e João da Ega, apesar de desiludidos com a vida, desatam a correr para apanhar um «americano» que os leve ao jantar para o qual estão atrasados, Raul, desolado com o rumo e o fim da conjugalidade, levanta-se inopinadamente da mesa do café onde se encontra e, com o pensamento na Vera, decide encontrá-la à saída do escritório: «Ainda a apanho, disse para si, ainda a apanho!».
Vai-se sempre a tempo de reaprender o sentido da vida…

Sobre o autor

Thierry Santos

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