O homem que gostava de falar de chouriços

Escrito por Fidélia Pissarra

“Contudo, desenganem-se os que, aqui chegados, julgam que o Zé desprezava os benefícios de se ser europeu e as oportunidades europeias.”

O Zé nasceu na Lisboa perfumada e, talvez por isso, de cada vez que alguém emitia uma opinião que lhe não agradasse, dava em franzir o nariz como se as palavras cheirassem mal. O que, se nos lembramos de como decorria a vida dos donos dessa Lisboa onde nasceu, não estranhava aos que lhe conheciam as origens e compreendiam, perfeitamente, que a sua tentativa de aproximação ao resto do mundo ocorresse, recorrentemente, pelas imagens dos chouriços com que, em conversas mais difíceis, gostava de reforçar os seus argumentos.
Por exemplo, calhando alguém interpretar o facto de uma universidade cobrar 12 mil euros de propinas aos estudantes estrangeiros como uma possibilidade de correção das desigualdades no acesso ao Ensino Superior, por poderem pagar bolsas com o dinheiro cobrado, de imediato questionava: «Quer dizer que se te vender um pão com chouriço por um milhão de euros, mas te fizer um desconto de 950 mil, acabando a vender-te uma sandes de chouriço por 50 mil euros, posso considerar esse desconto como política social?»
Claro que amiúde, ao verem-se também eles comparados, pelo Zé, a sandes de chouriço, muitos dos que com ele argumentavam acabavam até ofendidos com essa sua obsessão, mas isso não o incomodava nada e, fosse qual fosse o tema da conversa, com ele acabava sempre nos bons dos chouriços, o que tanto acontecia nas conversas sobre propinas, como nas conversas sobre habitação, saúde ou, vá lá, sobre ser-se europeu e a própria Europa. Aliás, no que à última diz respeito, os bons dos enchidos costumavam ser ainda mais acutilantes, pois se havia algum assunto que o Zé gostava de resumir a negócio de chouriços era, precisamente, o da Europa. Para o Zé, nascido entre os aromas da Lisboa limpa e arejada que olha para o rio, a Europa, o facto de Portugal pertencer à União Europeia, era uma catástrofe de dimensão nunca por aqui vista e sempre tendeu a estar mais do lado dos que a atacavam do que dos que a defendiam.
Contudo, desenganem-se os que, aqui chegados, julgam que o Zé desprezava os benefícios de se ser europeu e as oportunidades europeias. Apesar de se considerar como um antieuropeísta convicto, ao ver-se a braços com uma das incomensuráveis heranças com que os da Lisboa mais cheirosa costumam ter de lidar, a conselho do contabilista, o Zé decide abrir uma Fundação que, entre outras coisas, lhe permite “aproveitar” os fundos europeus para “ajudar”, “auxiliar”, o que lhe queiram chamar, os que não têm dinheiro para pagar as propinas do ensino superior. Isto, sabendo nós o quanto o Zé abominava a ideia de uma cidadania de mão esticada e considerar que pôr os estudantes ricos a pagar as bolsas dos estudantes pobres só servia para legitimar as desigualdades sociais. Por isso, já sabe, se tiver problemas relacionados com o pagamento das propinas e não lhe tenham atribuído uma bolsa, embora, na hora da verdade, o homem goste é de falar de chouriços, vá mas é ter com Fundação do Zé.

Sobre o autor

Fidélia Pissarra

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