O tempo em que se acreditou que seria possível os governos orientarem orçamentos e políticas para o essencial do bem-estar das populações há muito que acabou. Preservar a vida, o acesso à saúde e aos medicamentos, o funcionamento das escolas, o abastecimento em géneros alimentares, o fornecimento energético, o tratamento dos resíduos urbanos e a higiene pública, os apoios sociais a quem de outro modo não teria rendimentos para viver, etc. Entre a década austeritária dedicada ao salvamento dos bancos, e o presente em que a guerra na Ucrânia veio servir de pretexto para todos os lucros e abusos das grandes empresas, um curto período de pandemia fez recordar o fundamental. Importa lembrar que ao longo da História da Humanidade houve sempre a tentação de atribuir todas as dificuldades do momento a um único motivo.
Assim foi desde a Roma Antiga até ao mais caricato e ignóbil ato de ilusionismo perpetrado em 1984, pela televisão pública francesa, com o apoio do governo, que confiou ao ator Yves Montand a apresentação de um programa intitulado «Vive la crise!», o qual era destinado a fazer com que os franceses acreditassem que todos os seus problemas resultavam do Estado providência. Uma purga social serviria, portanto, de remédio universal. Algo que não é muito diferente do que se passa hoje em dia nos canais portugueses. Após o 11 de março seguiu-se a chamada “Guerra ao Terrorismo” e mais um motivo para justificar as dificuldades e fazer aprovar medidas contra os trabalhadores e pensionistas. Hoje em dia, na Rússia, todos os problemas existentes têm forçosamente origem nas manigâncias do Ocidente, enquanto no Ocidente a culpa é sempre de Moscovo. Joe Biden atribui infatigavelmente à «taxa Putin» sobre a alimentação e a energia o forte aumento da inflação nos Estados Unidos.
Macron também afirma que as dificuldades atuais dos seus compatriotas mais pobres se explicam por uma «economia de guerra». Assim sendo, porém, há quarenta anos que os franceses não conhecem a paz. Porque o fim da indexação dos salários aos preços remonta a 1982, quando François Miterrand, o socialista e o «mon ami» de Soares, e o seu ministro Jacques Delors ofereceram às empresas privadas a prenda mais gigantesca que jamais haviam recebido do Estado. Desde então os trabalhadores franceses viram o seu poder de compra sofrer um corte duradouro. E, no entanto, nessa altura a Ucrânia e a Rússia ainda formavam um mesmo país, e Putin ainda não tinha saído da sua cidade natal, Leningrado.
As receitas para os problemas são sempre as mesmas. Nada que enganar! Neste início de agosto tudo voltou ao habitual, só que pior: depois de trabalharem para o Estado a salvar bancos, os trabalhadores passaram a trabalhar para o Estado para salvar as grandes empresas, das energéticas às dos combustíveis e às da grande distribuição alimentar. E nem é preciso fazê-lo com apoios diretos, sejam eles do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) ou outros: basta recusar-se a taxá-las como o fazem com os rendimentos do trabalho; basta deixá-las acumular lucros extraordinários e distribuir dividendos astronómicos, sem os taxar, à custa do sofrimento social que vai alastrando. O que se pensa que vai resultar do espetáculo diário dos mais ricos — cada país tem os seus oligarcas — a anunciar lucros e distribuições de dividendos, entre uma viagem espacial e uma entrevista complacente em meios de comunicação de que são proprietários, no meio da ostentação dos locais de férias que escolheram e dos luxos de que não abdicam?
Não chega dialogar com elefantes e ter momentos românticos com a passarada.
Desde as vacas voadoras às que sorriem, as fábulas de La Fontaine não tinham tanto significado na História da nacionalidade e da bravura pacifista deste torrão de terra de gente hospitaleira, feiras de enchidos, arraiais de bagaço e um corpo de generais na reforma (superior aos soldados no efetivo) que agora comentam nos diretos televisivos uma guerra. Com a guerra na Europa, o futebol e a Igreja católica apostólica Romana a descobrir as sotainas, eis que vamos ser confrontados com um Parlamento em que a direita foi substituída pela extrema-direita e a extrema-esquerda pela esquerda central. Depois, uma recessão sem precedentes. Onde a inflação será fator de fome e o custo da energia atingirá valores incomensuráveis para a bolsa dos portugueses. Costa sabe disso. A prova foi o decreto que determinou que um tal de Galamba ponha o anel (brinco?) nas faturas da eletricidade. Será que um dia a idiotice terá limites?
O futebol, a crise, a idiotice e a sotaina
“Com a guerra na Europa, o futebol e a Igreja católica apostólica Romana a descobrir as sotainas, eis que vamos ser confrontados com um Parlamento em que a direita foi substituída pela extrema-direita e a extrema-esquerda pela esquerda central.”