O atraso, a azinheira, os pastorinhos e o circo

Escrito por Jorge Noutel

“A vida terrena é madrasta e hipócrita para milhões, mas para a igreja, deles será o idílico sonho.”

Terminaram as Jornadas Mundiais da Juventude. Deixemos o espiritual, o transcendente, o desconhecido, o sonho que faz acreditar os mais simples, e voltemos à realidade. E a realidade vem-me à memória sempre que recordo Carlos Drumond de Andrade: «E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? E agora, você? Você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama, protesta? E agora, José? Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora, José? E agora, José? Sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua incoerência, seu ódio – e agora? Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas, Minas não há mais. José, e agora? Se você gritasse, se você gemesse, se você tocasse, a valsa vienense, se você dormisse, se você cansasse, se você morresse… Mas você não morre, você é duro, José! Sozinho no escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, você marcha, José! José, para onde?». A realidade José.
A vida terrena é madrasta e hipócrita para milhões, mas para a igreja, deles será o idílico sonho.
Séneca, filósofo estoico e um dos maiores jurisconsultos romanos de todos os tempos, preceptor de imperadores, inspirador da tragédia na dramaturgia europeia renascentista, foi alguém que teve que lidar constantemente com pessoas não cooperativas e poderosas e enfrentar o desastre, o exílio, a saúde frágil e a condenação à morte. No exílio, afundado em grandes privações materiais, Séneca dedicou-se aos estudos e redigiu vários de seus principais tratados filosóficos. Entre eles, os três intitulados Consolationes (“Consolos”), em que expôs os ideais estoicos clássicos de renúncia aos bens materiais em busca da tranquilidade da alma mediante o conhecimento e a contemplação. Curiosamente, algo parecido ao que tem sido, aparentemente, a mensagem do papa Francisco.
No meio de uma crise sem precedentes, a igreja recorreu a uma estratégia, também ela, sem precedentes, de massificação da mensagem. E nada melhor do que dizer aos pobres, àqueles que dificilmente algum dia deixarão de o ser, que ser pobre, seja lá isso o que for nos dias de hoje, é normal. Essa desmaterialização da miséria, esse desvio da esperança para algo não mensurável, é a melhor arma para se garantir o conformismo resignado de milhões, impedindo revoluções. Creio até que foi Napoleão quem disse um dia que a religião é a única coisa que impede os pobres de matarem os ricos. Nietzsche foi mais longe e dizia, com desprezo, que a única diferença entre ele e Deus era que ele, Nietzsche, existia. Para mim, a religião é apenas sinal de atraso. A todos os níveis. E nem sequer preciso de falar do passado e dos quase infinitos crimes cometidos em nome da religião, de todas elas, entre os quais se contam, assim a grosso, no caso da igreja católica, as cruzadas e a inquisição. Ou de factos tão caricatos como o de a igreja do papa Francisco ter demorado quase quatro séculos a pedir desculpa a Galileu, 350 anos depois da sua morte, para sermos mais precisos. Por isso, as lágrimas de crocodilo vertidas pelo seu chefe em nome da redenção pela pedofilia nunca me comoveram. Pode até ter sido mais rápida do que em relação a Galileu, mas o problema é que nem morreram os pedófilos nem muitas das suas vítimas. E a igreja, que continua aí, teima em reduzir a substância terrena destes crimes a questões técnico-jurídicas, como a do valor do testemunho das vítimas. Só falta exigir meios de prova audiovisuais para reconhecer e indemnizar as vítimas pelos crimes que tentou, durante décadas, ocultar da forma mais corporativa e abjeta que se pode imaginar! A mesma igreja que, em contrapartida, acha que todos devemos acreditar que Nossa Senhora apareceu em cima de uma azinheira a três pastorinhos e que isso justifica Fátima…
Regressando a Séneca e ao seu ideal, o tal que se confunde com os fundamentos do discurso papal, recordo que nada de mais enganador existe. Séneca disse, afinal, que a religião é vista pelas pessoas comuns como verdadeira, pelos governantes como útil, e pelos sábios como falsa. Olhem para a forma absolutamente desproporcionada como as JMJ ocuparam o espaço mediático, e percebem….

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Jorge Noutel

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