Nivoso

1. Não aprecio estereótipos, mas os modelos podem ser excelentes ferramentas de leitura. Um exemplo: os políticos da Guarda. Em 2019 mantém-se o modelo de há 30 anos: o confrade que gosta da boa mesa, com discurso redondo, visão provinciana, que ganhou ou espera ganhar uma reforma choruda graças à política, adepto dos conciliábulos de gabinete, comentador da inevitável rádio calipso, que dá tudo para aparecer com governantes e líderes em visita, que nunca desiste de influenciar, que só fala de livros para impressionar o Eduardo Lourenço, possuidor de uma ambição de sargento que quer ser tenente e não passar daí.
2. Falta um cronista competente para retratar sem piedade, mas com desvelo, esta choldra a que chamam país. A impunidade, a solidão encapotada, a cobardia, o pavor do vazio, a iliteracia generalizada, a corrupçãozinha, a venalidade, o nepotismo, o colapso moral. Portugal precisa de um retratista à altura. Urgente. Dão-se referências.
3.. Como eu percebo o Pessoa do “Poema em linha recta”!… A fragilidade escondida dos super-heróis com que nos deparamos no quotidiano é tão real como a fragilidade que se mostra, sem máscaras e sem medo. O problema está em que a força da que está à vista põe a nu aquela que se varre cuidadosamente para debaixo do tapete. E quanto mais se tapa, mais se odeia quem expõe essa fraude à luz do dia. Sem perceberem a dimensão da dádiva que esses anjos delicados lhes sussurram. Tempos complicados os nossos. Quem mostra lutar pela empatia contra a vaidade é encarado como um bizarro…
4. Uma das manifestações mais exuberantes do provincianismo mental é a escrita opulenta. Pretensiosa. Circular. Construída para mostrar erudição. Uma ilegibilidade deliberada, que atordoa e embasbaca. Que mascara o vazio com um caudal semântico que chega a confundir o leitor, mas nunca o autor. O qual sabe bem que o coleccionismo verbal mais não é do que um suplemento vitamínico para a aridez criativa e um amparo para a vaidade. A escrita que conta, é indissociável do estilo. Mais à custa de uma sintaxe oleada do que da riqueza vocabular. De modo a que, mesmo sendo esta última indispensável, nem se dê por ela. Como que apagando-se o autor diante da grandeza onde toca. Onde esculpe a clareza com um cinzel mudo. E só aí dá voz à inesgotável riqueza da experiência humana.
5. É interessante perceber a evolução do pessimismo antropológico. Em Hobbes, «o homem é o lobo do homem». Já para Freud, o homem é o lobo de si próprio. Ou seja, o «todos contra todos» do autor do “Leviathan” levou à ideia de que os humanos não são determinados pelo bem, mas pelo prazer. Mesmo que isso inclua a (auto)destruição. Pouco depois, Lorenz veio explicar que, afinal, os lobos não são todos iguais, existindo uma hierarquia na alcateia. Bem sei que os românticos progressistas sobem pelas paredes quando ouvem falar nestas evidências, preferindo o optimismo prometeico de Rousseau. Mas pronto, é a vida!…

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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