A notícia da semana é que o desembargador Neto de Moura vai processar todos os que o criticaram em público pelas suas decisões em processos de violência doméstica. Vão ser visados políticos como Mariana Mortágua, humoristas como Ricardo Araújo Pereira, e os processos contra eles têm como fundamento «as ofensas à honra pessoal e profissional» do juiz.
Haverá quem aqui se lembre da liberdade de expressão e das inúmeras condenações do Estado Português no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) por violação da liberdade de expressão em muitas sentenças condenatórias, quando estão em causa crimes contra a honra. No confronto entre o direito à honra e a liberdade de expressão tem de prevalecer esta, e muito mais quando está em causa o direito à honra de políticos e pessoas públicas em geral. E os juízes? Bem, com os juízes não é bem assim. A necessidade de garantir a independência dos tribunais, face ao poder político, ao chamado quarto poder, aos populistas fáceis, traz uma necessidade de proteção superior àquela de que beneficiam políticos, socialites e rostos muito reconhecíveis da televisão. Mesmo assim, um tribunal alemão considerou criminalmente atípico o ataque a um juiz, comparado «a um porco copulando com a justiça». Neto de Moura, dirão, não foi alvo de um ataque assim. Ninguém se aproximou sequer desse nível de ofensa.
Em que ficamos? Neto de Moura tem ou não possibilidade de sucesso na ação que vai intentar? E, se a ganhar em Portugal, não irá o TEDH, de novo, condenar o Estado Português? E as decisões judiciais, são ou não publicamente criticáveis? A resposta a estas perguntas é: “talvez sim”, “talvez não” e “depende”. Explico-me.
Antes de mais, Neto de Moura não vai apresentar queixas crime por ofensas à honra, vai intentar uma ação cível. Isto é, não nega a liberdade de expressão de quem o criticou. Vai, antes, pedir indemnizações pelos danos que lhe foram causados. É como se dissesse: têm todo o direito de me criticar, mas se as vossas críticas me causaram um dano, um prejuízo, deverão ressarcir esse prejuízo. O fundamento legal está no artº 484º do Código Civil: «Quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou coletiva, responde pelos danos causados». Foi com base nesta norma que o Sporting Clube de Portugal conseguiu, há uma dúzia de anos, a condenação de um jornal que tinha divulgado uma notícia verdadeira: o Sporting devia dinheiro ao Estado. Houve muito alvoroço, mas a norma não distingue entre a verdade ou a falsidade dos factos: apenas exige que exista um dano. Assim, e desde que se prove o dano, poderá Ricardo Araújo Pereira ter de indemnizar o juiz. E uma vez que ao Ricardo Araújo Pereira não lhe é coartado o direito a dizer o que pensa, o TEDH não terá nada a ver com o caso.
O artigo 70º do Código Civil também protege o direito à honra de qualquer indivíduo, mas desde que a ofensa decorra de um ato ilícito, e é aqui que a porca torce o rabo. É ilícita a crítica, mesmo em termos desbragados? Não, está protegido na Constituição o direito a essa crítica, no capítulo precisamente dos direitos fundamentais. No entanto, o artigo 37º da Constituição, lá no fim, reconhece direitos a quem é alvo das críticas dos outros: «A todas as pessoas, singulares ou coletivas, é assegurado, em condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta e de retificação, bem como o direito a indemnização pelos danos sofridos». E lá estamos outra vez: podes dizer de mim o que quiseres, mas terás de me indemnizar pelos danos sofridos. Isto, claro, se os tribunais considerarem os danos dignos de tutela jurídica e que houve desproporção entre os acórdãos criticados e o teor da própria crítica. Vai ser interessante seguir o caso.