Nas últimas semanas a SIC tem feito um trabalho notável, ao recuperar memórias e depoimentos de um tempo de grande entusiasmo nos pós 25 de Abril de 1974 no profundo interior de Portugal. Bom trabalho da jornalista Alexandra Neves!
A memória de uma Nação é a base da sua identidade, e a realidade tem sido um continuado exercício da sua desconstrução, fruto de um desmontar de uma idiossincrasia de momentos passados, para a edificação de uma com prazo de validade encurtado pelas circunstâncias.
Quando se faz um documentário sobre o que foi o “serviço médico à periferia”, ou sobre as campanhas de alfabetização, ou as tão enxovalhadas de forma torpe Campanhas de Dinamização Cultura e Cívica do MFA, conseguimos ver que foi esse voluntarismo de uma juventude engajada numa dinâmica nova que permitiu lançar as bases de uma constituição de 1976 que salvaguardasse o direito das populações a algo tão comezinho como a saúde, a educação, a liberdade e o direito de escolher quem queremos que nos governe a nível central e local.
Do Serviço Médico à Periferia, para além dos excelentes resultados no terreno, surgiu a base do SNS que urge manter e valorizar, mesmo que alguns o queiram destruir, perante a complacência de uns quantos decisores que vão assobiando para o lado.
Tive o privilégio de ter andado nas Campanhas de Dinamização Cultural do MFA e hoje digo com toda a clareza que foi provavelmente a melhor experiência política e pessoal em que participei.
O Portugal que vi nesse tempo era uma miséria construído entre fragas, veredas, tugúrios, cheiros nauseabundos em casas sem água canalizada (nem 40% do país tinha água canalizada e só 29% tinha saneamento básico), eletricidade, em suma lugares onde se sobrevivia de geração para geração. Nascia-se, sobrevivia-se e morria-se cedo!
Umas poucas casas de emigrantes davam um toque de discutível modernidade aos povoados, onde nas estradas as pessoas conviviam com a lama e tudo o que os animais iam defecando numa urbe que se enchia de moscas no pico do verão e fumo e gelo no Inverno. Sobre as vilas e aldeias portuguesas, Hans Magnus Enzenberger dizia: «Surgiu aqui uma arquitetura espontânea, a qual, através da imitação dos outros e, depois, de si própria se foi desenvolvendo em espiral, num pesadelo delirante que ultrapassou os próprios modelos originais». Em seguida apontava o motivo desse crime: «Os emigrantes vingaram-se, de uma forma terrível, do país que não havia conseguido alimentá-los». Acertou no alvo!
As campanhas de dinamização cultural do MFA levaram às aldeias teatro com atores profissionais e amadores, cinema, música, desporto e acima de tudo transmitiram a esperança de valores tão caros ao 25 de Abril de 1974 como solidariedade, liberdade, democracia e criação de consciência coletiva pela melhoria das condições de vida das populações. Com a ajuda dos militares rasgaram-se estradas onde até então havia caminhos entre muros, levou-se eletricidade onde só havia candeia, fizeram-se fossas e iniciaram-se saneamentos, criaram-se campos de jogos e ginásios rurais, equiparam-se postos médicos e de enfermagem que pudessem responder às necessidades primárias das populações, entre tanto que se fez em tão pouco tempo.
Houve excessos, houve voluntarismo a mais talvez porque a revolução se desfazia em ternura, mas o ódio dos que sempre foram privilegiados e a forma soez como a Igreja fomentou a contestação levou-nos a afirmar que estávamos certos no que queríamos fazer valorizando as pessoas.
Sobre essa campanha só se me oferece citar Nelson Rodrigues: «O mais sórdido dos crápulas tirava o chapéu e tomava a bênção da mãe, estava sempre vestido com aprumo, confessava e comungava aos domingos, fazia o sinal da cruz com água benta e pedia um santinho ao padre!».