Não basta pedir perdão

Escrito por António Ferreira

“Não há nem devia haver perdão sem reparação da vítima, sem garantias de se não voltar a cometer o mesmo crime e sem se ter cumprido a sanção que caiba ao caso.”

Em “Cristo na Cruz”, escrito em Quioto em 1984, diz Jorge Luís Borges que Cristo nos quis deixar «esplêndidas metáforas e uma doutrina do perdão que pode anular o passado. (Essa é a frase que na prisão escreveu um irlandês)».
O irlandês era Oscar Wilde e escreveu essa frase em “De Profundis”, quando estava preso por ter cometido o crime de ser homossexual, ou, como diziam na altura, por actos de indecência grosseira com outros homens, ou ainda, como o próprio disse no julgamento, pela prática «do amor que não ousa dizer seu nome».
Umberto Eco, em, salvo erro, “O Pêndulo de Foucault”, conta a história daquela jovem imaculada que, logo antes de adormecer, tem um único pensamento impuro. Como morre nessa noite, sem ter tido oportunidade de se arrepender e, por isso, de poder vir a merecer o perdão católico, tem como destino, segundo a doutrina da Igreja, o inferno.
O tráfico de indulgências, a prática de obter o perdão dos pecados mediante o pagamento de um preço, acabou por levar a uma cisão na Igreja e, entretanto, por desacreditá-la. Essa doutrina do perdão, obtido no confessionário ou mediante um pagamento, acaba por relativizar os comportamentos puníveis, religiosa ou criminalmente. A lógica dos católicos, pelo menos de muitos, é que se o pecador se arrepender terá na mesma garantido, por piores que sejam os seus crimes, o “reino dos céus”. Daí à lassidão dos costumes e à tolerância que todos os pecadores e criminosos esperam, vai um passo. Nos países anglo-saxónicos, em que os católicos são minoria, estes têm precisamente essa fama. «Fazem o que lhes apetece, confessam-se, declaram-se arrependidos e fica tudo bem». A ética acaba por se reconduzir aos mandamentos, aos pecados e à importância desproporcionada que é dada ao sexo.
Muitos autores (por exemplo David S. Landes, em “A Riqueza e a Pobreza das Nações”) ligam o inferior desempenho económico dos países católicos em comparação com os protestantes a essa lassidão de costumes. Assim se explicaria, por exemplo, o mau desempenho do Québec, católico, perante as restantes províncias canadianas, anglófonas e protestantes. Para os protestantes, não se apagam pecados e pecadilhos com um simples arrependimento. É preciso muito mais, começando por não viver contando com o perdão final que irá lavar o passado, por mais sujo e vergonhoso que seja.
Não há nem devia haver perdão sem reparação da vítima, sem garantias de se não voltar a cometer o mesmo crime e sem se ter cumprido a sanção que caiba ao caso.
No caso dos crimes cometidos por padres católicos contra crianças e jovens, recusou já a Igreja católica portuguesa indemnizar as vítimas, oferecendo antes, sonsamente, «apoio psicológico». Mesmo sabendo que há padres identificados por testemunhas como abusadores que continuam no ativo, é recusada a sua suspensão preventiva, preferindo, pelos vistos, correr o risco de continuação da atividade criminosa. As vítimas, aqui, não parecem contar muito, nem sequer o suficiente, perante o inalienável direito ao perdão de quem lhes destruiu a vida.

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António Ferreira

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