Enquanto ouvia a crónica do jornalista Amadeu Araújo, na Rádio Altitude, recordei uma série televisiva que tinha o bom hábito de ver nos anos 90. Para o cronista, a problemática era a do eventual encerramento de maternidades na Beira Interior e, em concreto, o estudo encomendado pelo Ministério da Saúde que sugere o fecho de seis urgências obstétricas, nomeadamente a da Guarda.
A decisão poderá só ser tomada na primavera de 2023. E a haver alguma será sempre política. Mas antes tem de ser tudo discutido, analisado e as partes têm de ser incluídas na equação – e a parte mais importante, mesmo que não seja ouvida, é a população, o povo…
Entretanto, tem de ser revista a política de numerus clausus e haver mais vagas para aceder a Medicina; o corporativismo da profissão tem de dar lugar à dedicação e solidariedade, pois é inadmissível que continuem a faltar médicos em todos os hospitais; a escala de obstetrícia tem de ter a disponibilidade de todos os médicos, pois não pode continuar a encerrar, na Guarda, à sexta-feira, como tem ocorrido, «porque na Guarda não se pode nascer em certos dias» ficando a população, e em especial as mulheres grávidas, «em angústia permanente». Como comentou o jornalista na sua crónica radiofónica, sobre a obstetrícia, «não temos médicos, se interessem pela Guarda, mas temos faculdade; que o Estado investe uma pipa de massa na formação destes especialistas que na hora de pagarem o investimento trocam o bem comum pelo privado; o governo tentou abrir vagas mas não mudou o orçamento e o corporativismo congelou a formação dos especialistas que nos faltam; pois que se baixem as médias ou se aumentem as propinas; e que o tempo de formação pago pelo estado seja devolvido em anos de serviço em colocações onde são necessários os especialistas…». E foi neste ponto que recordei a série televisiva “Norther Exposure” (https://www.imdb.com/video/vi949616921/?playlistId=tt0098878&ref_=tt_ov_vi), uma série de televisão americana de comédia dramática e fantasia criada por Joshua Brand e John Falsey, que entre nós foi transmitida pela SIC, entre 1990 e 1995, com o desdenhável título “No fim do mundo”. Eu vi-a em Espanha, pois nesse tempo residia em Bilbao, com um nome bem mais modesto mas muito mais honesto: “Doctor en Alaska”. “Médico no Alaska” (permitam que a chame assim) era um relato sobre um “peixe fora de água”, um dos mais velhos argumentos da literatura, uma fórmula explorada até à saciedade. Mas depois daquela série, por muitas histórias que se escrevam e por muita novelas televisivas que nos apresentem, nenhuma alcançará aquela magia e em nenhuma encontraremos a delicadeza genuína que descobríamos no Doutor Fleischman, que muitos víamos depois da meia-noite na “La 2” espanhola ou na SIC. A história era de um jovem médico judeu, de Brooklyn, que fez o curso de Medicina com uma bolsa de estudos paga pelos cidadãos de uma minúscula cidade no Alaska e que, nas letras pequenas do contrato, estipulava-se que depois teria de ser médico na terra que lhe pagara os estudos. Licenciado, aterrou numa aldeia irreal no extremo mais congelado da terra, em Cicely, no Alaska (EUA), um lugar com 214 almas, uma rua, um bar, um supermercado, uma emissora de radio, habitantes excêntricos, uma autarca feminista e um antigo cientista da NASA. Se o melhor da série era a suavidade do guião, surpreendente e singelo, sem pretensões e que por vezes pecava por poético, com uma extravagância digna dos contos românticos, a série colocava-nos perante o homem branco ocidental que assistia perplexo aos ensinamentos da realidade ou as mensagens crípticas que recebia do professor. Mas aqui, o professor era toda a aldeia, uma comunidade diversa, com saberes ancestrais, e a novela filosófica mostra-nos como a vida é simples, num tempo em que a televisão ainda era magia. Uma comunidade que pagou a formação de um médico. Um médico que depois teve de trabalhar para a comunidade que lhe pagou os estudos.
O curso de Medicina é um curso muito caro. E é com os impostos e os sacrifícios de todos os portugueses que a formação dos médicos é feita, o mínimo que se pode exigir é que os médicos se recordem disso quando dizem que vão trabalhar para a privada ou vão emigrar para ganharem mais. É legitimo e é razoável que ganhem mais, mas uma média de 3.500 euros por mês, acrescidos de 70 euros por hora extraordinária (e a maioria dos médicos faz umas dezenas de horas) num país com quatro milhões de pobres e onde dois milhões de pessoas vivem com 500 euros, ou menos por mês, devia exigir a alguns médicos pressupostos de solidariedade, responsabilidade social e abnegação… Ou talvez não… Mas entretanto, muita coisa tem que mudar, desde logo o acesso à carreira de Medicina.
Médico no Alaska
“é inadmissível que continuem a faltar médicos em todos os hospitais;”