Segundo os registos, Maria Augusta veio ao mundo a 13 de maio de 1913 e por cá andou durante 86 anos. Testemunha de duas guerras mundiais e de uma ultramarina, gostava pouco de falar da infância. Ainda menos da juventude. Geralmente, escolhia falar do que tinha feito no dia anterior e do que pensava fazer no dia a seguir, porque de todos os outros ninguém era dono. «O passado não se muda e o futuro a deus pertence». Por isso, três dias chegavam e sobravam para lhe definir a vida: ontem, comemos sopa, hoje, arroz com carne, amanhã, comeremos batatas com bacalhau. E era assim, sem grandes temperos, que «o sal faz mal e a pimenta também», que muito afortunada se sentia e os mais próximos a viam. Mais pelo controlo que tinha na gestão dos seus três dias, do que pela possibilidade, nada despicienda, de se conseguir alimentar oito vezes seguidas, diga-se. Porque, embora o chá a acompanhar o pão fresco com marmelada ao lanche e o café com leite a acompanhar as torradas ao pequeno-almoço, não contassem grande coisa para a economia doméstica, sempre requeriam algum planeamento prévio e competência adequada.
Um dia, encontrou-se manca da perna esquerda, a boa da Maria Augusta. Os passos revelavam-se uma dor só e nenhuma posição a aliviava do que o médico do Montepio Egitaniense lhe dizia ser uma artrose. Que não, não havia outro remédio se não operar. Operação de grande monta para 1964, já se vê. Aquilo só em Coimbra e, para chegar a Coimbra, eram pelo menos 4 horas de viagem até à Estação Nova. Devagarinho, haveria de conseguir caminhar até à Clínica de Santa Filomena, que ainda não sabia muito bem como havia de pagar. E foi assim que, ao ritmo das sequências dos bons dos três dias, trocou a carne do arroz e o bacalhau das batatas por uns “ferros” na anca. Mas, como um mal nunca vem só, até o médico do Montepio Egitaniense teve que lá ir a casa confirmar-lhe que os “ferros” não estavam em brasa e que aquela doença toda era o corpo a rejeitá-los. Não houve mais nem boa do que voltar a Coimbra para os tirar. Claro que, perante tamanha incompetência metalúrgica da Clínica de Stª. Filomena, a operação teve de ser na Clínica da Sofia, mas como já mal se conseguia mexer, haveria de se aguentar com café e umas torradas para o resto das suas sequências de três dias. Maria Augusta, talvez por não ter tido grandes perspetivas de futuro, nunca falava do passado e haveria de passar o resto da vida ainda mais ancorada nos seus dilemas gastronómicos. E só, de vez em quando, consentia em afastar-se deles para rezar, ferverosamente, à senhora de Fátima. Coisa que, pelo menos aos netos, sempre se pareceu mais com conversas sobre almoços e jantares do que com outra coisa qualquer, mas eles também nunca souberam o que era ter de trocar refeições por tratamentos médicos. Nem de recorrer aos humores da santa para coisa nenhuma. Por isso, também não sabem do que tratavam as duas, quando uma rezava à outra. Felizmente!
Maria Augusta
“Mas, como um mal nunca vem só, até o médico do Montepio Egitaniense teve que lá ir a casa confirmar-lhe que os “ferros” não estavam em brasa e que aquela doença toda era o corpo a rejeitá-los.”