Lúcido

Escrito por Diogo Cabrita

“Este é o Portugal sem telemóvel, sem amparo de filhos, sem humanidade institucional. A ele também se fecha a porta com a desculpa da Covid, a ele também se nega apoio com a desculpa da organização para a pandemia. Lúcido e em sofrimento, quero interna-lo e não posso. Não posso porque há menos camas, há mais exigências de regras insensíveis, há menos apoios sociais de qualidade.”

A propósito do SNS, tenho a memória recente de um homem lúcido de 88 anos, incapacitado de gerir o seu corpo pela vicissitude da doença, apoiado pela mulher doente e amparado por uma reforma miserável. Têm ajuda de uma prestadora de cuidados, mulher infeliz e doente, uma instituição que tem dificuldade em contratar gente melhor, uma unidade hospitalar semifechada na proximidade. Ele vem consciente, orientado, colaborante, com as dores das chagas, o edema da insuficiência cardíaca, a miséria de não poder comprar a medicação e a higiene de quem conta as gotas de água e a força do esquentador.
Este é o Portugal sem telemóvel, sem amparo de filhos, sem humanidade institucional. A ele também se fecha a porta com a desculpa da Covid, a ele também se nega apoio com a desculpa da organização para a pandemia. Lúcido e em sofrimento, quero interna-lo e não posso. Não posso porque há menos camas, há mais exigências de regras insensíveis, há menos apoios sociais de qualidade. Hoje há inúmeros administradores de serviços de saúde pagos principescamente onde os salários dos funcionários de limpeza e de apoio são ridículos e insuficientes. Ele está vacinado três vezes para o sars cov-2, mas a tuberculose foi esquecida, o tétano ninguém perguntou há mais de 20 anos.
Para espanto dele próprio já teve Covid apesar das vacinas. Não tento explicar. Há edema dos membros inferiores e do escroto e de parte do abdómen. O coração precisa de apoio musculado para se livrar da retenção líquida. Há feridas nauseabundas nas pernas e nas coxas – a urina mal limpa queima-lhe a pele. Não caminha porque ninguém o levanta, ninguém o ajuda a sair da cama. A lucidez neste homem é uma maledicência. Antes a morte que tal sorte! Pedi apoio institucional, um apoio que tem de ser transversal – à esposa doente, ao homem doente, à miséria das suas reformas, dirigida à dignidade, dirigida à recuperação intelectual, física e psíquica. Mas sabem que vos digo? – Não há! Tudo o que depende do empenhamento, da dedicação, do vestir da camisola, está esmorecido e queimado pela depressão e a revolta.
Recentemente tive uma luz no fundo deste túnel e tomei conhecimento de outra doente que teve a sorte de ir parar à Domus. A Senhora passou por um procedimento cirúrgico violento, um pós-operatório complexo, associado à sua idade carecia de muito apoio e chegou-me à consulta a pé, reabilitada. Que bom que encontremos quem acredite que isto não é só um negócio. https://www.uacs.pt/media/139/File/CasosEstudos/EstudoCaso_DomusVitae.pdf

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Diogo Cabrita

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