Acabou a farsa da apresentação, discussão e votação do Orçamento de Estado para 2020. Farsa porque, ainda antes de o ser, já o era. Ou seja, já se sabia que o orçamento era para ser aprovado a todo o custo, fosse ele qual fosse!
Os erros e as gafes que obrigaram a modificações sucessivas e à introdução de fórmulas em que as condicionais e as implicações abundam, são apenas incidências de percurso, de que foi exemplo a lamentável novela do IVA da eletricidade. O que interessa é que, com muitas contorções e piruetas à mistura, as lavandarias e os “offshores” continuam por aí e no essencial nada muda. Está aprovado um orçamento que carrega ainda mais nos impostos, em cima da mais alta carga fiscal de sempre!
O povo, esse, diz estar farto deste jogo de sombras que alguns dominam com mestria. Mas continua a colher aquilo que semeia. Queixa-se do falso aumento das pensões, do patético apoio aos que querem vir para o interior, da hipocrisia dos investimentos na saúde, na educação e nas ferrovias, dos falsos aumentos, do falso travão aos vistos gold em Lisboa e Porto, do teatro do superavit, eu sei lá.
Pelo meio, nós, aqui no interior, ficamos ainda pior do que os outros. Somos cada vez mais os campeões da desgraça. Quando isto está mal para os outros, para nós está ainda pior! Querem um exemplo concreto? Então aqui vai…
Sempre tivemos problemas graves na Saúde. Listas de espera imensas, ausência de valências clínicas, complexos problemas de acessibilidade, uma dependência crónica de outros hospitais, conflitos de todos os tipos. Agora, à laia de cerejinha em cima do bolo, temos o colapso de serviços e as “fake” listas! Isso mesmo, listas de espera a fingir, com doentes a serem inscritos para cirurgia, mas sem serem validados e sem poderem por isso ser operados se e quando a sua vez chegar!
A história conta-se em poucas palavras. No último mês de dezembro, um médico oftalmologista foi à Assembleia Municipal da Guarda avisar toda a gente para o risco eminente de colapso da Oftalmologia e de outras especialidades no nosso hospital.
Assisti em direto, incrédulo, a um desmontar lúcido e arrasador da demagogia e da propaganda a que o sistema recorre habitualmente para esconder estes problemas. Alguém fez alguma coisa depois desses avisos? Não…
Soubemos agora que os piores prognósticos do tal médico se confirmaram. Bastaram pouco mais de dois meses para a Oftalmologia da Guarda colapsar mesmo e para deixarem de ser operados, em cada mês, na Guarda, entre 150 a 200 doentes! Recordo-me de ter retido um número, quando o tal médico falou na Assembleia Municipal: a Oftalmologia havia efetuado mais de 38% de todas as cirurgias da ULS da Guarda em 2019. E tinha-o conseguido com escassíssimos recursos humanos, uma proeza verdadeiramente extraordinária para médicos, enfermeiros e outros profissionais!
O que fez o conselho de administração do nosso hospital? Veio a terreiro assumir a sua responsabilidade neste colapso e comprometer-se a fazer tudo para o reverter? Não. Esboçou apenas uma ténue e patética reação nos meios de comunicação social, tentando atirar algum tipo de culpa para cima do único médico que permaneceu no serviço, por sinal o mesmo que, em dezembro, nos quis avisar do que estava na forja! O mesmo médico que é publicamente conhecido por há uns anos ter colocado dezenas de milhares de euros do seu bolso em equipamento no serviço e por ter ajudado a impedir que nos fechassem a Maternidade e, em última instância, o próprio hospital!
Percebem agora porque é que eu digo que o orçamento é uma farsa? Porque vai ser gasto por gente deste calibre, gente com a competência e sentido de vergonha que podemos ver neste caso!
Será preciso lembrar a todos os mandantes e comensais que o Hospital de que vos falo não é concelhio, mas distrital? Que abrange uma área de gente paupérrima, envelhecida e cada vez mais com problemas de saúde e, também oftalmológicos? Ou será que querem, a exemplo do que já sucede pela grande maioria do país, que uma qualquer instituição privada de saúde abra portas na Guarda? Que aumentem os planos privados de saúde e que o Serviço Nacional de Saúde seja só o parente pobre do sistema que devia ser universal e de qualidade? Infelizmente parece que é essa a vontade…