Começaram os debates, que são aqueles encontros por vezes insultuosos, achincalhantes e pouco esclarecedores entre candidatos a representantes do povo, os tais que vão depois escolher um primeiro-ministro. Sim, importa desde já clarificar que não estamos perante a eleição de um primeiro-ministro. Estamos perante a eleição de deputados! Depois, se o resultado das eleições o permitir, se esses deputados se entenderem, seguir-se-á a indigitação por parte do Presidente da República de um líder do partido que consiga formar governo e fazer aprovar o seu programa.
Não deixa de ser revelador que para os “opinion makers” haja debates de primeira e debates de segunda. Uns fazem lembrar as lutas de galos, os outros servem sobretudo para nos tentar convencer de que até os pintainhos têm direito à esperança de virem a mandar na capoeira.
Pelo meio, a plebe está-se literalmente nas tintas para os “opinion makers”, para os candidatos e para os debates. Prefere outros circos. Só o “Preço Certo” teve uma audiência de 1 milhão e 55 mil telespectadores no dia 6 deste mês. O “Big Brother”, um dos programas mais estupidificantes de que há memória, foi ainda mais longe, com 1 milhão e 71 mil telespectadores! O futebol só não tem audiências semelhantes porque a maior parte dos jogos exige canais pagos para a sua visualização e a maioria do pessoal está pelintra na proporção direta do alheamento em que gosta de se afundar.
Este nível cultural, educacional e social, que começa em muitos dos candidatos e acaba no povo comum, não é de hoje. Guerra Junqueiro, em 1896, referiu-se a esta massificação da indiferença e cultivo da boçalidade numa dissertação que ficou célebre: «Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta. […] Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro- […] Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País. […] A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas; Dois partidos […] sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, […] vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar…».
Quais as diferenças entre o que Guerra Junqueiro escreveu há 126 anos e a atualidade? Será que alguém ainda acredita que os artistas de circo querem mesmo mudar o estado de coisas? Os baixos salários que a grande maioria dos portugueses aufere? A dívida monstruosa que nos torna reféns dos donos disto tudo? Uma inflação superior aos aumentos de salário que arrasta milhões para a miséria? As cada vez mais reduzidas reformas do português comum? É por não acreditarem, é por não terem esperança numa vida melhor, que os portugueses preferem outros circos.
Debates com apenas 25 minutos em que os moderadores querem brilhar ainda mais do que os debatentes, seguidos de horas de comentários sobre o que um interveniente quis dizer mas não disse, são a melhor receita para uma elevada taxa de abstenção. Não é difícil ao senso comum perceber que assim até o menos pensador dos cidadãos intui que não vale a pena queimar neurónios a tentar deslindar a teia de lugares comuns, promessas incredíveis, táticas de passa-culpas e recusas de compromissos concretos debitados pelos candidatos. Some-se a isto a pandemia e a perceção generalizada de que o futuro não será brilhante, e melhor se percebe por que razão impera a ideia de se viver cada dia como se fosse o último. Que é aquilo, afinal, que têm feito os ricos que deram cabo deste país. Só que o fizeram com o dinheiro dos outros. O pobre, esse, limita-se a ver TV.
Eleições, pantomina, depressão e televisão
“Debates com apenas 25 minutos em que os moderadores querem brilhar ainda mais do que os debatentes, seguidos de horas de comentários sobre o que um interveniente quis dizer mas não disse, são a melhor receita para uma elevada taxa de abstenção.”