Os marinheiros da Armada que se recusaram a embarcar no NRP Mondego escolheram para os defender Garcia Pereira, especialista em direito do trabalho. Os marinheiros estão ao serviço da Armada ao abrigo de contratos de trabalho e, diria toda a lógica, têm os mesmos direitos e deveres que todos os outros trabalhadores por conta de outrem. Têm direito a ser remunerados pelo seu trabalho, têm direito a boas condições de trabalho, que deverão prestar nas melhores condições de higiene e segurança, a férias, a uma reforma quando atingirem a idade, a ser tratados com respeito, a recusar ordens que ofendam os seus direitos e garantias. Certo? Não.
A nenhum trabalhador pode ser dada uma ordem que ponha em causa a sua segurança e o coloque em risco de vida e, caso seja dada, pode desobedecer, a não ser que seja militar. Qualquer trabalhador pode questionar as ordens que lhe sejam dadas por um superior hierárquico e, havendo razões para isso, desobedecer-lhes, a não ser que seja militar.
No limite, um militar tem o dever de sacrificar a sua vida se lhe for pedido e de obedecer sem perguntas às ordens que lhe sejam dadas. Pode questioná-las, mas se o seu superior as mantiver, tem de obedecer. Em “Catch 22”, de Joseph Heller, Yossarian, um dos principais personagens, ficou aterrado durante uma missão sobre Itália, dentro de uma fortaleza voadora, quando concluiu que havia milhões de inimigos que, se pudessem, o iriam matar.
Neste caso, a missão era acompanhar um navio russo que passava por águas territoriais portuguesas. Uma missão de rotina, com o detalhe de o navio a acompanhar ser de um país com quem a NATO e a Europa têm um conflito. A doutrina militar da NATO tinha um pressuposto, no que tocava à União Soviética e agora à Rússia: a Europa tinha de resistir aos tanques russos até à chegada dos reforços norte-americanos. Dava-se de barato que os russos chegariam ao Atlântico em poucos dias e que, entretanto, iriam arrasar sem piedade o que estava pelo caminho. A Ucrânia mostrou que isso não é bem assim, para alívio do Ocidente e vergonha dos russos. Com estes, como se sabe, não há questões de falta de disciplina. Em Bakhmut, os russos enviam sucessivamente grupos de poucas dezenas de soldados com o único objectivo de localizar a origem das balas que os vão matar. Eu não diria que está bem, mas é um bom exemplo dos extremos a que a condição de militar obriga. Esta tática é vergonhosa e mostra a incapacidade da liderança russa e a falta de respeito pela vida dos seus soldados, sobretudo numa guerra injusta como esta. O que pensará a Rússia agora da nossa capacidade militar? Se planeasse invadir a Europa a partir do Sul, por onde acham que começaria?
Queixa-se Garcia Pereira do julgamento público a que os seus clientes foram submetidos pelo almirante Gouveia e Melo, em frente às televisões e sem contraditório. Diz também que o processo disciplinar está agora «ferido de morte», já que nenhum instrutor terá coragem para contradizer o almirante. Demagogia. Os marinheiros estiveram mal ao recusarem embarcar contra as ordens do seu comandante que, ele, não teve medo. Agora virão os processos, os castigos e os recursos. Que venha também a consciência de que há coisas que têm de ser feitas mesmo que doa, ou que sejam perigosas.
Disciplina e Bom Senso
“No limite, um militar tem o dever de sacrificar a sua vida se lhe for pedido e de obedecer sem perguntas às ordens que lhe sejam dadas. Pode questioná-las, mas se o seu superior as mantiver, tem de obedecer. “