Quem tem medo do lobo mau? (parte I)

Escrito por Antero Carvalho

“A simples ideia do desconhecido sempre gerou, ao longo da história da humanidade, vários movimentos, que não sendo mais do que processos com origem na ignorância, se tornaram, na maioria dos casos, épocas de enorme regressão civilizacional para a humanidade.”

A simples ideia do desconhecido sempre gerou, ao longo da história da humanidade, vários movimentos, que não sendo mais do que processos com origem na ignorância, se tornaram, na maioria dos casos, épocas de enorme regressão civilizacional para a humanidade.
Como exemplo, assim de repente, vem-me à memória um passado fatídico, com o movimento que originou a inquisição, já recentemente, as perseguições feitas às tecnologias, como; a inteligência artificial, ou à mal-amada Distributed Ledger Technology (DLT), comumente conhecida como “blockchain”. O medo, por um lado, e a ajuda pejorativa, levada a cabo por más práticas no seu uso, por outro, tornaram-se o mote para modernizar o argumento, de modo a alavancar, este movimento inquisitivo contemporâneo, com a bandeira, dos perigos que são as novas tecnologias.
A ciência, assim como o conhecimento técnico que ela origina, sempre foram, o maior pesadelo e o arqui-inimigo da ignorância. Por isso, os lóbis que vivem de uma sociedade ignorante, tenderão a lutar até à última gota de sangue, para evitar que os destinos da humanidade, sigam uma trajetória assente em conhecimento, promovendo a todo o custo, a sua desacreditação, através do medo e substituindo por ondas de resposta mais condizentes com os seus interesses, quer sejam expressos em novos estados dogmáticos, como fortalecendo o status quo dos já existentes.
Tudo, menos a evolução assente em pensamento consciente, conhecimento e ciência. Para isso a humanidade inventou a fé, o dogma, o mistério e claro, como resultado, para a sua manutenção, precisa perpetuar a cultura à ignorância, por sua vez, a sua consagração ao medo. Quando me refiro ao medo, não estou a falar do medo útil, aquele que poderíamos designar por estados de alerta, que nos permitiu desde sempre, enquanto espécie, a sobrevivência, mas sim, o medo fundamentado nessas falsas retóricas, impostas por terceiros interesses.
Temos medo do desconhecido, quando adultos, como tínhamos medo do escuro quando crianças. Na verdade, o medo que tínhamos, em criança, ainda é o mesmo medo que temos em adulto, originado a partir da nossa ignorância. Temos medo do amanhã, da morte, de ficar doentes, de perder o emprego, medo de não sermos reconhecidos e de ficar sozinhos. Todo este medo é apenas causado pelo fato de não compreendermos plenamente todo o processo que tem origem nos confins da nossa mente e gera sentimentos subsequentes que nos conduz a estados, desse medo que nos paralisa, nos torna inúteis e nos comanda a vida.
Não há nada de errado, no fato do ser humano, sozinho, não saber como levar a cabo o – conhece-te a ti mesmo – para a partir desse conhecimento, ser possível compreender-se, compreender o mundo de forma mais clara e a partir dessa maior clarividência, passar a dominar os tais medos, por desconhecimento. O errado, está na minoria, aqueles que conhecem esta dimensão da realidade e da origem do problema, usando-o para benefício próprio, consequentemente, precisando de alimentar argumentos de falsos perigos que possam vir a ser usados para manter as condições do seu status quo, perante a maioria.
A tecnologia tem sido usada como um desses argumentos na atualidade. Mas na realidade, nunca poderá ser uma ameaça para o ser humano, isto por vários motivos que diversos defensores da tecnologia já tiveram a oportunidade de demonstrar. A história, ela própria, tem mostrado que a tecnologia apenas tem, a capacidade de auxiliar o ser humano, ao acelerar e/ou aumentar, em escala, o que são os conhecimentos humanos, mas na essência, os seus efeitos, apenas dependem, do bom ou mau uso que o Homem lhe poderá dar. É partindo deste mote que os argumentos, contra os avanços tecnológicos e as tecnologias, se agarram, para garantir a permanência do seu status quo, através de supostas justificações dos perigos que serão para a humanidade, caso essas tecnologias caiam em mãos erradas. De certa forma, há algum perigo, mas que facilmente pode ser mitigado por legislação, regulação e fiscalização.
O verdadeiro perigo que a evolução científica, por sua vez, a aplicação desta, à tecnologia, poderia representar, no que seria um abrir da caixa de pandora, está longe de poder ocorrer. Isto, tão simplesmente, porque a matriz do desenvolvimento científico, para que esse perigo seja real, precisará de sofrer uma mudança paradoxal, face aos atuais pressupostos que a sustentam e isso, parece-me está fora de questão, pelo menos por agora. Por isso, estamos a salvo de um perigo real, mas simultaneamente, estamos condenados a ter uma ciência pouco capaz de nos trazer soluções mais eficazes, pois a sua aplicação tecnológica reflete as suas limitações estruturais¹.
Poder-se-ia dizer que a humanidade se encontra numa encruzilhada, resultante de um aparente sucesso, seguido por uma eufórica sensação de ter chegado já, à definitiva e universal verdade científica, no que foram as descobertas que consagraram o pensamento científico em torno de pressupostos fundamentais que afetam, até hoje, toda a forma de fazer ciência. Um pouco como ocorreu, com o que resultou quando se estabeleceu a fronteira, entre a ciência do, antes e depois, da descoberta de Copérnico.
Antes de Copérnico havia ciência, o mundo existia, o Homem acreditava e fazia-se valer do seu conhecimento com base no princípio da teoria geocêntrica da terra. Embora muitos fenómenos não se conseguissem explicar com base nesse conhecimento de então, o fato, é que era possível suportar essas incongruências com os tais dos; mistérios, dogmas e fé. Depois de Copérnico, foi preciso muito para que o status quo da época, inevitavelmente, aceitasse tal teoria como um fato científico, aí, a ciência avançou e a tecnologia que sempre teve como objetivo servir o Homem, traduzindo o seu conhecimento científico em respostas concretas a problemas, acompanhou essa tremenda descoberta.
Mais tarde, assistimos a novas e importantes constatações, expostas em teorias, que levaram a alterações significativas em toda a ciência, por sua vez, afetaram positivamente as inovações tecnológicas. Talvez, as mais significativas, tenham sido protagonizadas por Albert Einstein, sendo a partir dele que se desenvolveu muita da ciência e tecnologia que hoje temos. A par com a física, outras áreas da ciência evoluíram enormemente, como tem sido o caso, das ciências médicas, de entre elas; a neurociência e a genética, entre tantas outras, com elas, também a biotecnologia que lhe dá suporte, caminhando de mãos dadas.
A tecnologia, entenda-se, as tais máquinas que tanto medo nos causam, são simplesmente um reflexo do conhecimento humano. Ela apenas é capaz de processar sem erros, o que lhes ensinamos a processar e em menos tempo, infinitamente menos tempo. Mas a tecnologia não é capaz de criar um pensamento disruptivo, ou seja, um momento eureka, como um Copérnico ou um Albert Einstein. Ela cinge-se a reproduzir um conhecimento já existente, em ganhos na eliminação de erros, escala e tempo.
Se assim é, supondo que todos concordam com esta premissa, então deve ser, centrado no Homem que devemos estar a tentos aos perigos, mas também é a partir da sua capacidade de aceder a esse “Mundo das ideias” de Platão que devemos depositar as nossas esperanças para que, com seres humanos que consigam ter acesso a esse patamar de conhecimento, a humanidade possa atualizar os pressupostos da ciência que permitam à tecnologia, refletir esse saber, nas tão necessárias respostas que precisamos urgentemente; no combate a doenças, à fome, à pobreza, aos grandes desafios do planeta e porque não, à própria ignorância, que num sentido lato, é a causadora de todos os males de que padece a humanidade.
O Homem exige à tecnologia que resolva problemas que ele próprio não está capaz de resolver. No entanto, impõe a essa mesma tecnologia, como matriz de funcionamento, todas as características duma ciência criada com base em pressupostos que tudo o que existe e faz funcionar o universo, é tudo o que a consciência humana é capaz de percecionar, assente no seu modus operandi, ou seja, numa tridimensionalidade espaço-tempo-movimento¹. Tal como, na época anterior a Copérnico, hoje vivemos, pensamos e fazemos ciência, impondo como barreira, ao modo como funciona o universo, uma contemporânea teoria geocêntrica, agora pautado por o erro egocêntrico, do que nos é permitido percecionar.
Precisamos atualizar os pressupostos da ciência, para poder exigir às máquinas, ou seja, à tecnologia, resposta em igual efetividade, pois a atual tecnologia, é apenas o espelho do conhecimento científico que detemos e este resulta da capacidade e/ou incapacidade de ultrapassarmos, mais uma vez, na história da humanidade, a falácia perigosa de que já atingimos, com a atual ciência, todas as verdades sobre o funcionamento do universo, depositando teimosamente a culpa da falta de resultados, já não, no dogma, mistério e fé, mas agora, na tecnologia.
Se não bastasse, transmitirmos essas limitações da ciência que fazemos às máquinas, exigindo delas resultados para lá das limitações com que as construímos, não há uma única voz, capaz de afirmar que “O rei vai nu”. Talvez estejamos a viver uma nova época de escuridão científica, face aos desafios que enfrentamos. Tal como antes de Copérnico, precisamos de um novo fluir de pensadores, absolutamente disruptivos que não temam enfrentar as fogueiras da contemporânea inquisição.

* Gestor e consultor

Sobre o autor

Antero Carvalho

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