Crimes em Aldeia do Bispo

Escrito por Francisco Manso

“A lei da separação entre a Igreja e o Estado, e as perseguições e vexames a que a Igreja católica estava sujeita, provocaram uma forte reação por parte do clero, nomeadamente do arcebispo-bispo da Guarda, D. Manuel Vieira de Matos, preso e desterrado por várias vezes.”

Estávamos em agosto de 1912. A República que tinha acabado de nascer, precisava de se afirmar e olhava desconfiada para todo o lado. Mas, mesmo nesses tempos tão conturbados, de ódios e perseguições

1. Manuel Vieira De Matos

1. Manuel Vieira De Matos, arcebispo-bispo da Guarda. 1903.

levados ao extremo, houve um crime às portas da cidade da Guarda que emocionou o país, tal foi a sua crueldade.

 

A lei da separação entre a Igreja e o Estado, e as perseguições e vexames a que a Igreja católica estava sujeita, provocaram uma forte reação por parte do clero, nomeadamente do arcebispo-bispo da Guarda, D. Manuel Vieira de Matos, preso e desterrado por várias vezes.

Os padres de Pêro Soares, Porto da Carne e Arrifana estão presos na cadeia da Guarda, o mesmo acontecendo ao padre Baltazar, de Maçainhas, e ao padre Viegas, de Avelãs de Ambom. Ocorre, entretanto, a reação monárquica liderada por Paiva Couceiro.

Uma festa em Vale de Estrela

Em Porcas, agora mais apropriadamente Vale de Estrela, é dia de festa. O pároco da terra, António de Almeida Nave, convida para pregador na festa do Senhor dos Esquecidos o seu colega de Aldeia do Bispo, o padre António de Sousa. Natural do Paúl, concelho da Covilhã, é um jovem de 30 anos, robusto e destemido, e um monárquico convicto.
Do púlpito da igreja de Vale de Estrela anuncia que a hora da redenção está próxima e já está a clarear na fronteira galega, referindo-se à incursão monárquica, então a decorrer no norte do país.
O Governo não gostou. Ao pregador é instaurado um processo e o pároco de Vale de Estrela, por o ter convidado e julgado conivente nas suas palavras, é expulso da terra e substituído por um padre “pensionista”, não reconhecido pela hierarquia católica.

A morte de Maria Neves

Algum tempo depois, a 24 de agosto de 1912, morre Maria Neves, de 95 anos, e o padre Sousa marca o funeral para o dia seguinte.
No dia 25, regressado da Guarda, onde ia quase diariamente, prepara-se para fazer o funeral, já quase o sol posto.
À hora marcada, e depois dos filhos do sacristão já terem dobrado os sinos três vezes, a irmandade ainda não tinha aparecido. Apercebe-se, então, de uma altercação dentro da igreja entre alguns membros da irmandade, ao que parece por causa da distribuição das opas.
Irritado com a falta de respeito dentro do templo, repreende-os com severidade. Palavra puxa palavra, a questão azeda-se e tiveram que ser as mulheres a por água na fervura.
Nesse momento, Ângelo Fernandes, homem de mau génio, mete-se no barulho, desafiando o padre para a sacristia. O padre deita-o ao chão, mas no meio da confusão que se gera, é agredido ferozmente pelos amigos de Ângelo. O regedor, António Fernandes, não se sabe com que intuito, dá voz de prisão ao padre, ultrajado na sua própria igreja.
Preso, com a sobrepeliz rasgada, foi levado para o adro, no meio de uma onda humana. Perguntou para onde o levavam! Que seria para a Guarda, ficou a saber…
Só nessa altura alguém se lembrou que, afinal, a mulher ainda não tinha sido enterrada e que não havia outro padre.
Assim sendo, o regedor ordenou ao padre que fizesse o funeral e que só no dia seguinte iria para a cadeia.

2. Paiva Couceiro

2. Paiva Couceiro

A morte do regedor

O padre Sousa, perdido, e sob o pretexto de mudar a sobrepeliz rasgada, vai a casa, onde já tinha mandado o sacristão, Sebastião Pereira.
A princípio, julgando que ia fugir, alguns ainda vão no seu encalço, mas vendo-o regressar, todos voltaram para a igreja. Desfigurado, dirige-se para a sacristia, onde, dando a impressão de tudo estar bem, pergunta ao regedor se sempre era verdade estar preso.
– “Sim senhor, faça lá o enterro, depois se lhe dirá para onde deve ir”, responde o regedor.
Então, de repente, puxa de uma pistola automática Browning e, à queima-roupa, desfaz-lhe a cabeça.
Com horror e espanto, uns fogem, outros agarram o padre. Depois, todos, a pontapé, a murro, numa cena de indiscritível ferocidade, quase o matam na própria igreja. Até com um castiçal de chumbo foi agredido…
Rompeu, contudo, daquela turba e, embora em mísero estado, conseguiu chegar à porta lateral. No adro, a pancadaria não parou, mas mesmo assim, conseguiu fugir aos seus perseguidores e a uma cacetada na cabeça, que o Cruz, correndo atrás dele, lhe ia dar com um estadulho.
Foge para uns penedos, onde se esconde. Descoberto por um dos cabos, o Joaquim Baltazar, que chama um outro, o Alípio, diz-lhe:
“Anda cá, está aqui o coelho…”
Atirou-lhe uma pedra. Mas apenas viu que o padre Sousa se levantava, fugiram os dois.
Mas o padre, esgotado, cheio de sangue por todo o lado, já mal se podia mexer e limitou-se a sentar à beira do caminho, onde um dos cabos, seu amigo, o Fortunato Pereira, consegue que lhe entregue a pistola. Chegaram, entretanto, vários homens, mas já não podia andar, recusa-se a regressar à aldeia, preferindo ir para a Guarda, e aí entregar-se às autoridades.
Como José Pacheco, afilhado do regedor, mandara um seu tio, Alexandre Cairrão, tocar os sinos a rebate, já era uma pequena multidão que ali se encontrava.
Quando chegou à capela da Santa Cruz, caminho da Guarda, pediu um pouco de água para os lábios…

O assassínio do padre Sousa

Ainda não havia recebido a água e já sobre ele caíam pancadas, atirando-o ao chão, assassinando-o horrorosamente, no meio de vociferações!…
O que aconteceu parece ter sido terrível. O taberneiro, que tinha casa logo ao lado e era seu amigo, ao vê-lo ser tratado tão selvaticamente, tem um ataque de “nervos”.
Com calhaus pontiagudos, os homens dão-lhe na cabeça e no tronco, e as mulheres, que na igreja tinham procurado acalmar os ânimos, no meio da histeria coletiva, são agora as piores, sempre a acicatar os homens.
Como que endoideceram, atiram-se ao padre, rasgam-lhe as roupas, retalham-lhe a carne e “britam-lhe os miolos”, na soleira da porta da Capela da Santa Cruz. Cortam-lhe as orelhas e só o largam quando o sentem bem morto. De facto, naquele momento, o jovem e imprudente padre já não é mais que uma massa informe de carne e sangue. Indescritível!…
Já não era o homem robusto, valente e idealista, era um corpo mutilado, sem vida nem chama, abandonado sobre uma mesa de pedra utilizada para as merendas, naquela trágica e triste noite de 25 de agosto de 1912.

3. Festa Da Santa Cruz

3. Festa Da Santa Cruz, poucos anos depois dos acontecimentos.

Foi sepultado no mesmo dia e no mesmo local que o regedor, no cemitério de Aldeia do Bispo.
Quem foram os assassinos? Ao certo nada se provou. Quem ficou com a fama foram os habitantes de Aldeia do Bispo, mas sempre houve quem se lembrasse de lá ver muita gente que nada tinha a ver com a terra. Mas que de repente a emigração para o Brasil aumentou, não fosse a justiça pregá-las, é um facto.
Foram duas barbaridades, qual delas a mais repugnante, e o povo de Aldeia do Bispo, no dia do funeral do seu regedor e do seu pároco, chorou pelos dois, mas também pela Maria Neves, que, afinal, ainda estava por enterrar…

* Investigador da história local e regional

Sobre o autor

Francisco Manso

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