Cremação e corpos em cinza

Escrito por Diogo Cabrita

As cinzas num pote que levas na saca são a tua mãe? Cinzas dele misturadas com as cinzas do cão que tanto gostava e com os livros que mais leu. O Alberto foi cremado com fotografias dos filhos e da mulher que amou sempre. No pote colocaram moedas de ouro entre as cinzas para deixar na prateleira. Quis ser cremado assim, com coisas que gostava muito. As cinzas deixadas no rio, largadas do pote no mar, soltas ao vento no Grand Canyon. Há aquele pai, registado no cinema, que leva as cinzas do filho a caminho de Santiago. Martin Sheen, meio zangado, meio ferido na alma, percorre o caminho. A cinza é pouco intensa e por essa razão há quem as queira colorir. Tatuar a minha morte disseram há dias. Querem corantes que se envolvem nas cinzas complexas que são de pessoas e de histórias. Houve um benfiquista que se fez vermelho no pó. Depois há aquele dia em que se abre o pote e a cinza da velhota vem para a roupa dos filhos e a boca dos netos. Cospe-se a cinza, sacode-se a cinza. Não estamos a sacudir o pai, mas que impressiona, lá isso sim! Cremar os corpos e colocar a cinza no cimento da casa que estamos a construir. Pegar nas cinzas e entregar o pote nos pés da oliveira. Fazer da cremação um movimento de intensa imaginação. Percebemos todos que o pote com o nome não tem um corpo para reencarnar. As cinzas da Madalena foram com as fotos dos quatro homens que conheceu intimamente. Tinha essa perversão de os ter todos e assim os levou. Nas cinzas constrói-se um processo de mistura, uma força de centrifuga que tudo perdoa e tudo pode espalhar, levar ou enterrar.

Sobre o autor

Diogo Cabrita

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