As eleições do passado domingo não trouxeram qualquer resultado que não fosse o já esperado (exceção feita ao PAN), tendo por leitura uma primeira projeção das legislativas de outubro e ainda um sério aviso a alguns autarcas.
O que verdadeiramente me espanta é a forma como algumas organizações se envolvem nas campanhas eleitorais e, para dar um pequeno exemplo, basta referir a postura de determinada igreja.
Com os timings considerados oportunos somos confrontados com declarações estapafúrdias, que em nada contribuem para o cabal esclarecimento nem tão pouco encaixam no normal funcionamento do regime que vivemos. Em fevereiro de 2018, numa “notável” intervenção do líder da Igreja católica em Portugal, designado cardeal, ficámos a saber que os divorciados de um primeiro casamento devem abster-se de terem relações sexuais, para logo de seguida chegarem as retificações ao patético discurso de quem meteu o pé na argola, dizendo que, afinal, não era bem aquilo que queria dizer. Mas disse.
Agora, num apelo sem precedentes, resolveram apelar ao voto em três partidos (Basta, Nós Cidadãos e CDS/PP) com o argumento da defesa dos «grandes valores da vida» vindo logo de seguida dizer que se tratou de «uma imprudência». Mas fizeram-no.
A Igreja católica é livre de alertar os seus seguidores para o que muito bem entenda, mesmo percebendo que não se deve imiscuir em negócios que não são seus. É que “as igrejas e outras comunidades religiosas encontram-se separadas do Estado”, o que faz com que não sejam incluídas no protocolo do Estado.
Reconhecer o fundamentalismo católico quando apresenta argumentos velados de visível tentativa de manipulação, fazendo questão de opinar em processos da sociedade civil mesmo sabendo que a República jamais será esvaziada de valores, onde ninguém tem o direito de condicionar ninguém, assumindo o Estado a neutralidade necessária para garantir a igualdade entre todos os credos e religiões, mesmo percebendo que a religião católica tem na população portuguesa a sua grande base de sustentabilidade.
É por isso que ganha suma importância a legalização da interrupção voluntária da gravidez, o casamento gay, a implementação da educação sexual, a pílula do dia seguinte, a procriação medicamente assistida, o reconhecimento de género, as barrigas de aluguer, as uniões de facto, a contraceção, o testamento vital e, se tudo correr como se prevê e, tal qual acontece na Holanda, Bélgica, Suíça ou Luxemburgo, a eutanásia será legalizada acontecendo o mesmo aos canabinóides, incluindo haxixe. E já não é sem tempo.
Neste triste espetáculo em que a hierarquia católica se mete bom seria que o Estado olhasse para a tal concordata, onde se nota a existência de vários artigos inconstitucionais e grosseiras interferências em assuntos da sociedade civil, repondo a sustentabilidade em processos como sejam isenções fiscais, IMI, exclusividade da prática de culto em monumentos nacionais, etc., etc., etc., entendendo que na maior parte das vezes só fala quem tem enormes telhados de vidro (tribunal da santa inquisição, autos de fé, conspiração contra o Estado em 1759, clérigos pedófilos, etc., etc., etc.).
É tempo de acabarem com práticas e conselhos podres e bolorentos de autênticos velhos do Restelo, agarrando a sociedade civil, com toda a firmeza e convicção ética, todos os direitos constitucionais que o regime coloca ao dispor, praticando, em toda a sua plenitude, a cidadania nesta República que se quer laica e assumidamente anticlerical.