Excelentíssimo Senhor Santo Nicolau, de alcunha Pai Natal
Quero começar esta carta, caro Pai Natal, com um reconhecimento público da minha hipocrisia.
Eu não acredito que o senhor exista, e também não creio que o nascimento de Jesus tenha origem divina. Por isso, parece uma tremenda desfaçatez escrever-lhe deste lugar de incredibilidade.
Se o deixa mais descansado, saiba que também não acredito no Orçamento de Estado português, e, no entanto, é de lá que vem o dinheiro com que me pagam o salário.
Para ser sincero, não acredito mesmo que o senhor exista, caro Pai Natal, mas também não acredito que o Sporting seja campeão, que o Governo nos devolva as liberdades rapidamente, ou que o Miguel Gameiro deixe de cantar, e olhe que eu desejo muito qualquer uma delas.
Por isso, vou fingir que o senhor existe, para efeitos de comicidade e para poder escrever os três mil caracteres que o chefe de redação de O INTERIOR me pediu. Em vez de uma carta, mais valeria ter escrito um “tweet”, se eu tivesse parado esta missiva no segundo parágrafo, logo depois de assumir que a mim não me enganam com boinas vermelhas – aliás, normalmente é mesmo de boinas vermelhas que eu mais desconfio.
(Contei agora, e mil caracteres já lá estão. As angústias existenciais dos escritores – e as minhas também – servem sempre de forma perfeita o propósito de fingir que se está realmente preocupado em contextualizar a mensagem. Não acredite nisso, leitor. É mesmo só para encher a página de linhas.)
Sabe, caro Pai Natal, vejo em si um usurpador imperialista. O senhor, que é um empreendedor nórdico, roubou o trabalho a um miúdo judeu. A sua posição de dominação é eurocêntrica e neoliberal porque valoriza muito mais o cosmopolitismo de quem viaja pelo mundo num trenó, do que o trabalho manual de um carpinteiro da Galileia. Além disso, o senhor tem políticas laborais muito questionáveis. Pelo menos, Jesus dava de comer aos que o seguiam.
Também não entendo a razão de o terem seleccionado para a distribuição mundial de prendas. Bem sei que as pessoas não deixam de ser válidas por chegarem a uma certa idade, mas este sistema capitalista de trabalho intensivo podia ter sido mais benevolente consigo. O estado de bem-estar escandinavo não lhe valeu de nada. Noutras circunstâncias, deveria estar agora a gozar a sua reforma numa casinha algarvia à beira-mar.
E este ano, meu caro, imagino que deva andar aterrorizado com o sacana do vírus que anda por aí. Sabe bem que é um vírus tramado para os mais velhos. Ir de casa em casa levar prendas, sem certeza de que as pessoas vão ter todas as cautelas para não lhe passarem o bicho, não lhe deve dar descanso nenhum. Ouça o adjunto da Directora-Geral de Saúde, e não se aproxime muito. Fique no pátio. Não desça pela chaminé, atire as prendas pela janela.
Caro Pai Natal, o espaço para esta carta está mesmo no fim. Já não há caracteres disponíveis para pedir nada. É verdade que não acredito em si e que durante o ano gozo do benefício de ser um pequeno-burguês europeu a quem a crise não afectou. Mas é claro, há sempre uma coisa ou outra que uma pessoa não tem e gostaria de ter.
Não se preocupe, eu envio um áudio por WhatsApp a um dos gnomos.
Feliz Natal.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia