Daqui a meses fará 10 anos que Carlos Adaixo, professor de Filosofia e artista plástico, lançou o seu romance de estreia. Nele, traça o quotidiano de indivíduos de uma «cidade de província», cujos destinos se cruzam ou se desviam, naquele Portugal prestes a inaugurar a Ponte Salazar, enquanto se desmoronava o Império, devagar.
No prólogo, entra-se no café anunciado no título como no romance. Seguem-se nove capítulos que relatam três anos de rotinas de vários tipos sociais, em particular as do barbeiro, entrecortadas por episódios tristes e alegres. O desfecho, no décimo e último capítulo, ocorre em 1996. A narrativa acaba como começa, com a neve a cair. Tratar-se-á da cidade da Guarda? Sim e não. Anónima, a urbe pode ser uma qualquer, desde que fique longe do mar e perto da serra.
O certo é que a cidadezinha se desdobra na urbanidade associada aos cafés e na rusticidade típica das tabernas, lugares de sociabilidade quase exclusivamente masculinos. Cavalheiros frequentam o café Neves. As senhoras da boa sociedade organizam “chás de caridade” sob a supervisão do padre. Algumas já possuem carro próprio. No fim do dia, nas velhas ruas do burgo, homens etilizados ziguezagueiam.
Ao fazer a crónica dessa mítica urbe do interior, a voz do texto anima a imagem das artérias que vão dar ao Neves. Nelas, operam o polícia sinaleiro, o cauteleiro e o louco; nelas, vêem-se passar estudantes e aldeões. No romance, o café tem tanta ou mais importância do que as personagens encenadas. Cheio de personalidade, logo definida pela porta giratória que o caracteriza, e, lá dentro, pela sala revestida de espelhos bronze, quase sempre mergulhada numa nuvem azulada, através da qual o expedito empregado de mesa vai e vem, o Neves acolhe prestamistas, comerciantes e doutores, que aí se deslocam para consumir boatos e notícias da cidade e do mundo.
Ora retratista das diferentes silhuetas que compõem essa clientela, ora sociólogo das formas de conjugalidade e da mulher burguesa, o narrador descreve com vigor o contexto social e político através de figuras caricaturais e simbólicas, cujo carácter estereotipado ajuda a reconstituir o meio pequeno-burguês da época retratada. Também não tem pejo em descobrir-lhes torpezas e calculismos, o que as humaniza.
Apesar de o espaço público banhar numa atmosfera de medo, repressão e vingança, sob a presença do pide ignóbil que acabará assassinado, o narrador não deixa de desvendar testemunhos solidários entre pessoas com status diferenciado e os encantos da província, com os seus passeios na serra, práticas de caça e escapadas na Espanha.
Propondo-se dizer a cidade em cena, o narrador tece um romance urbano que assimila a comédia de costumes agridoce, a narrativa policial – ao multiperspetivar um crime tão misterioso quanto perfeito –, e o “roman à clé”, visto camuflar identidades, despistar a geografia e distorcer a cronologia histórica que lhe serviram de modelo.
Fazendo da descodificação um signo de conivência com o meio de origem a que pertence, o autor executa um plano de resgate da memória local. De facto, por trás do Café Neves, é fácil, para quem o frequentou, reconhecer o Monteneve. Felizmente, a narrativa não se esgota nesse processo, transcendendo a matéria histórica em que se inspira.
Qual escanção, Adaixo decanta o ambiente de uma época, usando, num registo fluido e bem-humorado, jogos intertextuais e comparações com os tempos atuais. Ao desenvolver o tema do desaparecimento da identidade urbana, o autor devolve à própria História a dupla pergunta: de que é feito uma cidade do Interior e que tipos de cidadão nela se criam?
“Café no Centro da Cidade”: em memória do Monteneve (1945-1997)
“Ao desenvolver o tema do desaparecimento da identidade urbana, o autor devolve à própria História a dupla pergunta: de que é feito uma cidade do Interior e que tipos de cidadão nela se criam?”