Ao lado habita um corpo inerte. Não se move faz dias. Por cima grita-se ruidosamente. É gente? Gente não é certamente, que pessoas não falam assim. No andar de baixo o silêncio é assustador. Pessoas não calam tanto tempo. Saio e vou acordar o inerte que vocifera e se vira. Subo ao andar de cima e surgem vários enervados e agressivos. Sou corrido com enxovalho. Em baixo, uma idosa convida-me para um chá. O meu prédio está situado numa rua estreita de Lisboa e tem gente de Lisboa, o que é raro aqui. As pessoas falam outras línguas, alugam quartos e casas com entradas codificadas. Neste bairro sobram os de sempre, filhos dos que vieram há muitas gerações, mas são famílias sem lembranças, sem nomes de parentes, sem referências. Este que julgava morto, morre quase todos os dias e depois desperta, por magia das trevas químicas e líquidas que ingere faz 20 anos. Não chega a entrar em casa, cai na porta, e ali jaz quando o pontapeio ou o empurro a ver se não apodrece. Os de cima são filhos de gente da praça e gritam como cães. Ladram-se uns aos outros e acalmam pelas 2 da manhã. Tem dias que se agridem e chamam a polícia. Vivem juntos na mesma. Será da pobreza que os obriga a esta partilha. Há casais assim, também. Desavindos, sem relação, que se toleram no mesmo espaço por não haver dinheiro para mais. Este pequeno prédio é miserável e está a precisar de obras. Os de cima vivem com uns baldes grandes que recolhem as ribeiras que teimam cair do teto. Já a velhota está bem, porque eu vou cuidando dos meus espaços. Quero fazer a obra do telhado, mas só eu pagaria. Quero compor o teto, mas eles não deixam entrar o canalizador e o pessoal do seguro. Peguei nos 125 euros do Costa e dei ao bruto que adormece no corredor para ir dizer aos de cima que se calem. Ele foi e saiu uma briga das antigas. Quando sóbrio, o rapaz é valente, e trocaram-se bofetadas, murros e pontapés. Veio a polícia e mostrei-lhes o meu teto. Entraram depois da ordem do juiz na casa deles e deram-na por insalubre. Vieram os do IRA salvar os cães, afinal os que ladravam eram cães, e a segurança social chegou depois a levar os velhos escareados e malcheirosos que eles guardavam. Por fim, veio o dono da habitação com um sorriso rasgado. Por fim, os selvagens saíam e podia livrar-se da renda pobre. Lá me disse que vai fazer obras no prédio e alugar o andar a turistas. A minha Lisboa afinal morreu com 125 euros do Costa. Há coisas do Diabo.
Bizarros 125
” Peguei nos 125 euros do Costa e dei ao bruto que adormece no corredor para ir dizer aos de cima que se calem.”