Alegoria do cavernícola

“O senhor russo à minha esquerda no avião, sem pajalsta nem spaciba, saltou por cima de toda a gente para ser um dos primeiros a sair e ainda tentou passar a fronteira à entrada da União Europeia sem controlo nem vigilância.”

Na última viagem de avião, o passageiro sentado à minha esquerda era claramente russo. Percebi isso porque não falava inglês, não cumpriu nenhuma regra e invadiu 20% do meu espaço. Além disso, tinha na mão um passaporte que dizia Rossiiskaia Federatsia.
No lugar ao meu lado direito viajava uma cidadã ucraniana. Senti-me, por isso, um pouco como a União Europeia nos últimos dois anos. O meu coração está com a Ucrânia, mas também não me apetecia muito levar uma castanhada do russo. Como eu estava no meio, desta vez foi o europeu a perder território enquanto a ucraniana dormia descansadamente. Já que não conseguem dormir na vida real, que recuperem forças pela metonímia.
Os portugueses sempre queixinhas do comportamento de alguns turistas americanos e britânicos deviam ir a lugares onde abundam russos e comparar. Esses anglo-saxónicos, que não sabem falar outra língua que não seja inglês, são pelo menos educados o suficiente para entender que às vezes há locais que não sabem inglês.
Os russos não. Comportam-se realmente como se o mundo lhes pertencesse. Não entendem, não querem entender, que em Vilnius, em Kyiv, em Erevan, em Tblisi ou mesmo em Minsk as pessoas falam e querem continuar a falar outra língua. São línguas esquisitas? São. Têm alfabetos estranhos? Têm. E nós, o povo do til e da cedilha?
Como se não tivessem sido suficientes 70 anos de ocupação soviética com meio milhão de mortos e deportados só na Geórgia, a Rússia mantém hoje sob ocupação militar 20% do território desse país do Cáucaso. Em 2008, a Rússia bombardeou selvaticamente a capital, Tblisi, e outras cidades do país.
Hoje, os russos ocupam não só a Ossétia e Abecásia, como a maioria dos hotéis e restaurantes de Tblisi. 16 anos depois, continuam a bombardear os locais com “davai” e “spaciba” e “pajalsta”.
O senhor russo à minha esquerda no avião, sem pajalsta nem spaciba, saltou por cima de toda a gente para ser um dos primeiros a sair e ainda tentou passar a fronteira à entrada da União Europeia sem controlo nem vigilância.
A dada altura, eu já nem sabia se estava no aeroporto ou numa alegoria.

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Nuno Amaral Jerónimo

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