A ronda dos negacionistas

Escrito por António Ferreira

“Quando se desenhavam cenários apocalípticos, pensava-se que teríamos de nos preparar para meados do século, quando a atual classe dirigente já estivesse enterrada e esquecida, mas parece que afinal é nas mãos deles que o problema vai explodir.”

Hoje de manhã estava fresco. Para os dias que correm seria o alívio, não fossem a razão para o alívio do calor em excesso as nuvens de fumo que abafavam o sol. Parecia que do Canadá para a Europa é demasiado longe para chegarem cá, mas chegaram. A razão de incêndios tão graves no Canadá, dizem os cientistas, liga-se às alterações climáticas e ao tempo demasiado quente e seco. As florestas são ali em grande parte compostas de abetos negros, habitualmente resistentes aos incêndios, o que terá também causado algum desleixo por parte das autoridades. Nessas latitudes os incêndios não são tão frequentes nem tão graves como mais a sul, mas as circunstâncias climatéricas extremas deixaram de ser extraordinárias.
Quando se desenhavam cenários apocalípticos, pensava-se que teríamos de nos preparar para meados do século, quando a atual classe dirigente já estivesse enterrada e esquecida, mas parece que afinal é nas mãos deles que o problema vai explodir. Entretanto, boa parte da opinião pública continua em negação, apoiada por franjas pouco sérias da comunicação social e por uma direita, da ala conservadora à extremista, mais interessada em fingir que nada mudou e nada é preciso fazer a não ser procurar mais petróleo.
Não é só a respeito desse assunto que há quem negue o que está à frente do nariz. Sofremos uma pandemia que causou em todo o mundo milhões de mortos. Morreram de Covid, ou de doenças agravadas pela Covid, milhões de pessoas. Todos recordamos alguém do nosso círculo próximo que esteve gravemente doente, morreu da doença ou mantém sequelas. Se essa crise foi vencida, foi graças a uma campanha de vacinação como nunca se tinha visto antes. As vacinas, baseadas numa nova tecnologia (ARN Mensageiro), foram desenvolvidas, produzidas e começaram a ser administradas em menos de nove meses depois da declaração de pandemia da OMS em 16 de março de 2020. Essa nova tecnologia, percebe-se agora, vai permitir avanços revolucionários em inúmeras áreas da medicina e erradicar ou tornar inofensivas muitas doenças graves. Mesmo assim, continuam muitos a achar que a pandemia foi um boato, que a COVID era inofensiva e que as vacinas fazem mal e é melhor não as tomar.
Temos também os que acreditam nas mais evidentes mentiras. A invasão da Ucrânia pela Rússia não só não é uma invasão como a culpa dela é do Ocidente e dos nazis que mandam na Ucrânia; a solução para se atingir a paz passa por se deixar de fornecer armas à Ucrânia e negociar com os russos, fazendo-lhes cedências. Culpa ocidental, negociar, paz, são um trio de aparentes evidências que serve apenas para fingir bons sentimentos (no fundo, é cinismo) e esquecer a verdade dos factos. E os factos são estes: como diz agora o patrão da Wagner, nem a NATO nem a Ucrânia queriam invadir ou atacar a Rússia; foi a Rússia quem agrediu; não há nenhum regime nazi na Ucrânia; deixar de fornecer armas e apoio militar à Ucrânia levaria à sua inevitável derrota e incentivaria a Rússia a outras aventuras; nada há a negociar antes da retirada dos russos. Começa a propor-se uma possível solução, que passaria precisamente por essa retirada e pela realização de referendos livres e controlados por organismos internacionais na Crimeia e no Donbass, de maneira a que os seus habitantes escolham uma nacionalidade, russa, ucraniana ou outra. No fundo, a procura da paz através da democracia. Mas não, a internacional social-fascista (na versão século XXI: os comunistas aliados à extrema direita) continua irredutível.
Há outros negacionismos e outras afirmações de “verdades” lunáticas de que nem vale a pena falar. Nos Estados Unidos há uma estranha coincidência na aglutinação de muitas crenças. O republicano típico não é agora aquele tipo sério e conservador, religioso, trabalhador, confiável e um pouco limitado. Continua limitado, mas agora exibe uma panóplia de novas características: tem uma evidente admiração por Putin, não acredita nas alterações climáticas, recusa vacinas e não acredita na Covid-19, coleciona armas, acha que há uma conspiração no Partido Democrático que passa por práticas satânicas em que se bebe sangue de crianças, pode acreditar que a Terra é plana, julga que os problemas económicos da América se resolvem baixando os impostos aos ricos e proibindo a imigração, pode não ser religioso ou então é fundamentalista e a democracia, o direito, a separação dos poderes são valores a defender quando interessa ao seu lado da barricada. Talvez um dos grandes perigos do nosso tempo seja poder haver gente que pensa assim a mandar ao mesmo tempo na Rússia e na América.

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António Ferreira

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