Uma emergência pode ser «a improvável realidade» que Jorge Velhote (JV) tão bem descreve no prefácio – «O que se escuta é longínquo e acena crepuscular como as sombras que interrompem o tempo e a matéria dos dias».
Num contexto assim este livro foi tomando forma. Adriano Miranda e Paulo Pimenta, dois fotojornalistas do Jornal “Público”, sentiram que teriam de «mover montanhas e planícies» com o objectivo de fotografar, informar e guardar. Não quiseram deixar para mais tarde. Foram garimpeiros na procura dos andamentos de um país incomum num mundo até aqui ignorado.
Mais do que um retrato da pandemia, enquanto o medo se apoderava das pessoas, neste «estranho embrulho» incluíram a esperança numa «narrativa» de aprendizagem e ensinamentos.
Sem paginação, o livro é uma volta ao sol. 366 dias de um ano bissexto. Dias incertos. Dias de comoção e de perturbação. A concepção de cronologia perde-se nesta narrativa de sobressalto em que também o tempo vai abandonando a noção das horas. Assim podemos ler este livro – abrindo páginas ao acaso. A admiração e a estranheza serão uma constante. Ainda que muitas das imagens nos possam transportar para outras que foram invadindo o nosso quotidiano, estas são imagens cristalizadas sobre as quais o nosso olhar se vitrifica. Estão ali para a memória futura. «Traçam cenários onde se instala a nossa inquietação» (JV).
Antes do prefácio um desinfectante borrifa a noite. Como se um incenso qualquer ou uma água-benta abençoassem o dia que haveria de renascer. Cada um de nós é, neste gesto constante de purificar as mãos, o exorcizador de todos os fantasmas. Do abandono e da ausência que imagens, quase imperceptíveis da noite, sublinham ou sufocam a dor e a perda.
O deserto nas cidades. Alguém seria capaz de o imaginar? De o antecipar? Cidades – espaços de solidão – onde o vermelho vivo das ambulâncias deambula semi-perdido. Os sem-abrigo a destacarem-se neste vazio. Na impossibilidade de desviar o olhar admitimos, enfim, que existem.
Numa página de fundo azul, por entre outros países do mundo, ressalta Portugal. É este o país em que «os velhos somos todos nós» (Adriano Miranda). Enviamos mensagens e lançamos balões coloridos ao céu. Celebramos aniversários à distância. Estendemos uma mão cheia do que temos de melhor. Através de um vidro simulamos o toque da pele na pele de quem amamos.
Arrepios. Como ficar alheio à imagem de um impraticável Festival de Paredes de Coura? Às radiografias de um mês na linha da frente e aos pulmões nunca assim vistos? À representação da morte fria e só? Nunca tão só. Cemitérios de campas gélidas onde as flores não têm lugar.
Hospitais de campanha multiplicados num permanente estado de guerra. A inimaginável dimensão na distribuição de refeições.
A vida que teima em continuar – teletrabalho com mulher e criança e andorinhas na parede. Vindimas e transumância. As festas possíveis. Profissões que não podem parar.
«Há gargantas que não sufocam nem desistem» (JV).
A vida que estancou – locais da noite aguardam um regresso, misto de luz e cor esbatido nos rostos. «Tremura chamuscada e rude» (JV).
O mar em Leça da Palmeira não prescinde das suas vagas. O rapaz que desperta no duche. Uma fábrica de cadeiras de esplanada, ironia ou esperança. Recolha de lixo. Defesa dos direitos de quem tem direito ao trabalho. Ensino à distância. A expectativa da vacinação. O dia de S. Valentim.
A estranheza da vida. E aquelas flores que surgem do nada e nos querem lavar os olhos.
Fátima – impossível não parar junto aos pés de um peregrino. Todos «Somos testemunhas abnegadas» (JV).
Não seria demais se nos ajoelhássemos perante os autores deste livro, também eles peregrinos de diversos caminhos. Acender uma vela. Traçar riscos no céu onde pudessem repousar o olhar.
Permanecerá «Esta morada líquida que reconduz a grandeza do humano ao domínio mais sensível do olhar de Adriano e Paulo» (JV).
Neste livro a esperança está em toda a parte – «Emergência366 é uma roldana erguendo a memória ao seu lugar mais terrível para que tudo recomece» (JV)
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia