A Inutilidade das Coisas

Escrito por Maria Afonso

“Nesse tempo, na aldeia, o carnaval chamava-se entrudo. Os homens cantavam “Ó entrudo ó entrudo, ó entrudo maravalha, encerrei as mulheres todas num palheiro a roer palha”. As mulheres não ficavam atrás e respondiam com a mesma cantilena onde encerravam, agora elas, os homens todos num palheiro a roer palha. “

Ninguém se preocupava se o carnaval ocorria quarenta e sete dias antes da Páscoa. Descobri mais tarde ser sempre no primeiro domingo após a primeira lua cheia, depois do equinócio da Primavera. Todos conheciam bem o tempo que se avizinhava. Dentro da igreja tudo se cobriria de panos negros. Como se uma época de sombras se aproximasse e fôssemos eternos condenados a viver escondidos. Eram muitas as idas à igreja. O cheiro a cera queimada invadia o espaço e o fumo das velas que se iam extinguindo ardia nos olhos. Criança que era cansava-me esse ritual de negrume e tristeza. Fechava os olhos e pensava no verde aguado dos lameiros ou na lua gelada
a exibir-se no céu. Adormecia ao som do ritmado coro das orações. Até à Páscoa a noção de pecado e sacrifício deambulava connosco. Rodeava-nos. Sufocava-nos.
Nesse tempo, na aldeia, o carnaval chamava-se entrudo. Os homens cantavam “Ó entrudo ó entrudo, ó entrudo maravalha, encerrei as mulheres todas num palheiro a roer palha”. As mulheres não ficavam atrás e respondiam com a mesma cantilena onde encerravam, agora elas, os homens todos num palheiro a roer palha. Não me recordo de guerras de género. Tudo era brincadeira e riso. Nada se levava a mal. As casas onde viviam raparigas solteiras estavam sempre em alerta – Vê lá se ouves o portão – avisava a avó. Tinha comprado uma passadeira nova para o corredor. Por mais que estivéssemos atentos chegaria o momento inesperado em que a porta da casa se abria e o estrondo de uma telha de barro se esboroava sobre a passadeira nova. Eram as “cacadas” típicas do entrudo. A avó resmungava, mas, também ela, acabaria por soltar o riso perante aqueles fragmentos verdadeiramente cor de telha.
Ainda hoje ignoro a proveniência do nome por que era conhecido o Ti Zé Farrapé. No início da tarde, sem se saber como, aparecia vestido de trapos coloridos ou roupas velhas e, logo de seguida, dezenas de crianças o rodeavam. Emitia sons estranhos, por entre frases ou palavras incompreensíveis, como se viessem do fundo da terra. Lembro-me que nos fazia rir com os gestos e tropeços inesperados. Uma espécie de procissão profana seguia-o pelas ruas da aldeia. Imitávamos-lhe os sons e os gestos como se de um líder se tratasse. Éramos felizes naquela simplicidade. Não sabíamos ainda que aquilo era um rito de passagem da escuridão para a luz. Comemorávamos a fertilidade e a Primavera que, no final da tarde, se dedilharia nos botões de um acordeão. Dançava-se em celebração. Ninguém encerrava ninguém em palheiro algum. Fazíamos parte de uma unidade social sem nos importarmos de perdermos, por um dia, a individualidade quotidiana.
Na verdade, o entrudo nunca me atraiu. O que a memória me diz desse tempo é que me faz sorrir. Como naquele ano em que o avô, não sabendo ser o melhor meteorologista, disse ao início da noite – amanhã vai nevar. Assim foi. Um manto branco cobriu tudo de silêncio. Os pés enterravam-se na neve e os carreiros abertos gelavam. O dia de carnaval foi passado à lareira na casa de uma amiga. Frequentávamos a primeira classe. A mãe, para nos testar, enquanto experimentávamos aprender a fazer malha, perguntou como se escrevia Robbialac. Errámos redondamente. Apontou então para uma lata com letras brancas. Nunca víramos uma palavra com dois “bês” juntos. Rimos como a dizer – assim não vale! Ainda hoje me parece ter sido a primeira e única partida de carnaval que me fizeram.

* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

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