A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

Soubesse eu escrever um poema que falasse de paz e liberdade e havia de o lançar aos milhares quando sobrevoasse Donbass. Talvez chegasse às mãos de Anna. Estou certa que saberia dar-lhe um título.
Um poema será sempre a melhor forma de preservar a nossa humanidade.

Era sábado. A tarde corria na pressa que o inverno sempre traz ao dia. Adormecia morna a cor do lume atrás do vidro da lareira. Foi quando decidi sair. No jardim, um brilho lapidado pela luz cobria a laranjeira. As folhas expandiam todo o seu vigor. Por entre o verde forte as laranjas eram pequenos sóis. Ainda não tinha chegado o tempo e já algumas se amontoavam no chão em lamento. Cobriam-se de um cinzento-pó que ao toque se elevava em minúscula nuvem. No negro do alcatrão, afastada da árvore-mãe, outra laranja morria sozinha. Uma cicatriz dividia-a em dois meridianos. Aí a pele afundava ligeiramente e algumas manchas desenhavam minúsculas ilhas. Vista de cima era notória a solenidade de quem guarda um segredo. A laranja era um poema de amor. Chamei-lhe “laranja moribunda com luz por dentro”. No instante da morte, uma laranja pode ser a terra inteira. Um homem, a humanidade.
Talvez Paul Eluard quisesse dizer os versos de “La terre est bleue comme une orange”1. O fruto cheio de vida e sol. Tudo se passa à volta do pescoço. O amanhecer traz um colar de janelas, alegrias solares e segredos. As vespas florescem verdes como as folhas da laranjeira. A voz vibra em todos os ruídos do mundo. Entre a folhagem, névoas afundam o ser. Reflexo de sonhos perdidos esvaziam vitrais. A boca de Gala – fonte de prazer. A nudez do corpo e da alma. Os amantes que nada escondem. Um amor que escusa palavras ainda que as palavras não mintam. Mesmo que um laivo de tristeza escorra pelos punhais ou apague lâmpadas, Gala é o espelho do universo. A mulher-metáfora da terra. Cabelos alaranjados de sol, esculpidos em rosto redondo. Nos olhos três quartos de felicidade azul. O amor que nasceu antes da terra e do céu. Só esse amor pode dar acesso à poesia. E ao silêncio. É nesse silêncio que os amantes se expõem e a vida decorre da noite ao alvorecer.
“The Earth Is Blue as an Orange”2 – Donbass, Ucrânia. A guerra marca o ritmo. Anna e os seus quatro filhos, apaixonados por cinema, decidem banalizar as condições impostas pela guerra. A guerra passará a fazer parte do seu quotidiano. Mas, a existência da família será a mais normal. A recusa de abandonar a casa e de viver no meio do caos é também um poema de amor. Que a laranja possa crescer na árvore, amadurecer e ser colhida. Há-de ser regada com o sol que cada um tem dentro. Algumas laranjas cairão antes de tempo como as bombas que estalam ao lado. Noutras gerar-se-á um inexplicável bolor de ódio. Ainda assim, tocam-se instrumentos musicais, regam-se as plantas e fazem-se trabalhos escolares. Desce-se aos abrigos como o poeta a afundar-se entre a folhagem. Os ruídos do mundo obrigam a dormir de olhos abertos. Ao vazio da guerra respondem com o que têm de mais humano. A casa é uma terra azul. Um porto seguro de vida e luz. Sabem de outros mundos, mas neste decidem rasgar a esperança. Por vezes há o silêncio e o fogo. Soubesse eu escrever um poema que falasse de paz e liberdade e havia de o lançar aos milhares quando sobrevoasse Donbass. Talvez chegasse às mãos de Anna. Estou certa que saberia dar-lhe um título.
Um poema será sempre a melhor forma de preservar a nossa humanidade.

1 Paul Eluard, L’Amour la Poésie”, 1929
2 “The Earth Is Blue as an Orange” documentário, dirigido e escrito por Iryna Tsilyk, 2020

* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

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