A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

“Se Saramago erguesse esta rosa tudo se iluminaria, como um corpo e um destino. Poderia eu inventar uma canção e afirmar que o importante é a rosa.”

Está plantada junto à parede da casa. Tal como milhões de rosas terá sido polinizada por insectos. Ignoro se possuirá, como a maioria, cinco pétalas. Tem espinhos rectos densamente compactados. Consta que servem para se proteger de animais. Talvez de quem também lhe queira fazer mal. Do mesmo caule, num ano incomum, nasceram duas rosas gémeas de uma beleza singular. Terá sido a única rosa que colhi dessa roseira. Para a eternizar ofereci-a a uma amiga que ainda a preserva numa caixa de vidro. Trata dela como de algo divino pronto a ser venerado. Se abrirmos a tampa o perfume ainda vive como remanescência da Pérsia antiga.
Numa obstinação continua a dar rosas em Janeiro. Aguarda por um milagre de transformação. Que a amparem num manto e que este se abra a uma pergunta indiscreta. Tem sido frio este Janeiro por terras altas. A geada não se compadece, mas ela não tem desistido de lutar para se abrir ao mundo. A verdade é que foi envelhecendo precocemente. É hoje um enorme botão fechado em si mesmo. Resiste como uma espada. Ao vento que lhe ralha oferece uma dança. No branco da parede desenhou uma meia-lua. Debruço-me sobre ela e responde-me com um sorriso perfumado, não obstante a dor que deve sentir. Há vidas de rosas que não são fáceis.
O que sobra da rosa que não cede ao vento? Talvez um rumor onde pousar o ar. Fragmentos de fúria. Ou a incansável aprendizagem do abandono. O tempo vai mostrar os detalhes. Alguns murmúrios assumem o silêncio. Na lonjura. Na tontura da cor que virá. Renascerá noutros fusos horários onde o sol cai devagar. Vibrará com as forças estelares e não olhará para trás. Descobriu a lenda do milagre e do pão não quer saber.
Se Saramago erguesse esta rosa tudo se iluminaria, como um corpo e um destino. Poderia eu inventar uma canção e afirmar que o importante é a rosa. Ou recomendar para se amarem as nossas rosas porque o resto é sombra de árvores alheias. Mas tudo isto são frases de poetas e cantores.
Junto à parede da casa olho as minhas mãos aradas. Nelas enterro as sementes. Que a chuva branda me molhe. Hei-de desatar o corpo num planalto onde a rosa queime a luz.

* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

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