As memórias são uma espécie de melancolia afadigada fincada na pele fina das mãos. As fotografias, polaroides poeirentas, são o tempo ali parado na esperança da eternidade. Um reino onde levamos coisas pequenas para colorir. O poder de esmagar o tempo e o espaço e correr desnorteados. Por dentro do oceano à espera. Que a memória traga vozes. Um cais onde mais nada possa ancorar que não sejam palavras frágeis. Ou a súplica de uma carta.
Já queimámos incenso junto ao túmulo dos mortos. Construímos templos de pedra e pó e da nascente criámos rios. A vida vai-se escutando ao longe como música intemporal ou relógio sem ponteiros. Sabemos dos penhascos que a penumbra desgasta e do frio que nos cerca em certas noites. Desconhecemos quem segura as manhãs de bruma densa. Quem contém o caudal de uma ribeira nas mãos e impede o suicídio até ao mar. Quem ouve os sons do choro e constrói o silêncio lacunar? Já não existem anjos no alto de arranha-céus.
Aprendemos que em trilhos clamados não serena a voz. Somos algas ou crinas numa floresta. Entrelaçamos nos dedos as rendas asfixiadas de certas janelas. Somos a explosão de ramos que trepamos para tocar a nudez do mundo, uma blasfémia que devemos à loucura e à chuva ininterrupta.
De cima observamos os navios e o cais que não existe. Às vezes, sentados, pintamos paisagens e amamos a erva encharcada onde sossegamos os pés. O céu está mesmo ali e cai. Uma nuvem turva a quietude que os deuses ateiam. Vozes entoam cânticos de trás para a frente e a cabeça arde enquanto os olhos se derramam.
Nunca uma litania teve o dom de nos enfraquecer. De arrancar sangue do vazio da terra. Antes abrir as cortinas poeirentas dos sonhos, vestir um casaco velho e rafado, enfiar o gorro de lã dos dias frios e escrever o que o engano dita. Ou reescrever um livro onde repousar os dedos. Dobrar as esquinas das manhãs rasantes de orvalho. Confiar infinitamente nas promessas. E adormecer com claridade nos ombros.
Numa fracção de segundo uma nuvem dissipa-se como se solta de uma grua. O trote de um cavalo breve leva-nos a uma estrada sem fim. O tracejado branco no asfalto negro a guiar-nos. Inspiramos fundo e seguimos. Afinal as memórias somos nós com elas. Mostram-nos mapas amarelecidos onde sobressaem ancoradouros e enseadas. Onde nunca atracamos, mas sabemos que um dia existiram águas límpidas apenas para descansar o olhar.
* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia