Lembro-me bem do dia em que senti o monstro amoral nascer-me. Alternando a mirada entre o leite-creme que volteava com a colher de pau e o livro que segurava com a outra mão fui veementemente admoestada por “não se fazer uma coisa, enquanto se faz outra”. Olhava para o fundo da panela e via o brilho amarelo do leite a fundir-se com as gemas doces, olhava para as páginas e via aquelas letras a fundir-se com as minhas ideias. Indignei-me, não se podem fazer duas coisas ao mesmo tempo, porquê? “Não podem! Pronto.”
Deixei que o monstro crescesse e se instalasse e, a partir desse dia, incito-o a revelar-se sempre que alguém vem com “pronto” e “porque sim”. Deixo que esmiuce, até ao suplício, esboroe em migalhas inúteis, todas as moralidades que se pretendam apresentar como solução de qualquer problema, real ou imaginário. Se bem que, por via insidiosa, os imaginários se possam percepcionar como reais. Já ninguém me diz, sobre o ombro, como devo fazer seja o que for, evidentemente! Mas, de maneira subterfugia, querem que interiorize os políticos como corruptos e a democracia como o papão que me quer comer. Eu a ver uma coisa e, nem sei bem quem, a querer que eu veja outra.
Monstruosamente, aos olhos de uma certa gente, pergunto: os políticos são corruptos, porquê? Porque são políticos, ou porque um corrupto passou pela política? Pensam que alguém me responde? Não. Fico sem resposta a ouvir, incessantemente, que todos os males que me atormentam são culpa da corrupção dos políticos. Esses seres maléficos que se organizaram para me dar cabo da vida! O médico não está para pressas no atendimento aos doentes que chegam à urgência, a culpa é dos políticos! O professor não está para diversificar estratégias de ensino, a culpa é dos políticos! O funcionário das Finanças não está para atender ninguém e finge que o sistema informático está em baixo, a culpa é dos políticos! O polícia não está para vir multar o vizinho que não nos deixa sair, a culpa é dos políticos! Um ladrão rouba-nos o tapete da entrada, a culpa é dos políticos! O neto mata a avó, a culpa é dos políticos.
Por isso, não é de admirar que nas redes sociais, mais que em qualquer outro lado, prolifere quem se disponha a mandar interditar os políticos, só “porque são corruptos”, e a fazer a apologia do fim da democracia já que a considera a mãe de toda esta corrupção que nos espolia. Contra qualquer juiz que se disponha a tal decreto, espero que dentro de cada um nasça um monstro que se insurja: “mas interditar os políticos, porquê?” E, se alguém argumentar “porque sim”, ao menos que explique o que propõe em substituição da democracia. Já agora, se propuser uma ditadura, para substituir este bando de “corruptos”, que explique também em nome de quê? É que da liberdade e da transparência não há de ser! O meu monstro vai-me segredando ao ouvido que é em nome de uma autoridade moral, muito empenhada em atropelar esses princípios, disfarçada de justiceira.